O calvário de um soldado

                                                                                                                            

Todo homem tem como fim de sua vida a busca pela felicidade, mas poucos a encontram, uma vez que a buscam em lugares alheios à vontade de Deus e, assim, ao contrario de alcançar a almejada alegria encontram a frustração e o desânimo. O que poucos sabem é que uma das principais fontes de felicidade é a aceitação dos sofrimentos encontrados ao longo da existência humana.

Sofrimento: palavra dura e muito evitada, mas que segue a todos os homens cada dia de suas vidas.

O sofrimento é um sentimento presente na vida de todos, de maneira, grau e proporções diferentes constitui algo inerente à natureza humana sujeita as intempéries e provas da vida de todos os dias.

O que nos resta é aprender a conviver com o sofrimento e sabermos retirar de tão nobre sentimento os remédios para nossas almas, saber ver em tudo a mão de Deus, assim como ocorreu com um renomado coronel do exército do Vietnã do Sul: Nguyen Duc.

* * *

               Corria o ano de 1974 e o general Nguyen Duc, casado com uma senhora da alta sociedade de Saigon, tinha cinco filhos, era proprietário de dois imóveis e gozava de prestígio na sociedade e no exército vietnamita. Bom soldado, esposo e pai dedicado, católico praticante, Duc podia considerar-se bem sucedido na vida. Nada lhe faltava e progredia na carreira militar.

Mas eis que arrebenta a catástrofe de 30 de Abril de 1975: os comunistas tomam o poder no Vietnã do Sul e a vida de Duc muda radicalmente. Três meses depois da queda de Saigon, Duc é preso e enviado para um “campo de reeducação” ao norte do país, na fronteira com a China. Trabalhos forçados, lavagem cerebral, fome, solidão e maus tratos são seus companheiros durante treze anos. A família não tinha autorização para visitá-lo.

Dois anos depois da captura, sua esposa deixa-o para se casar com outro homem. Os filhos, um após outro, abandonam o pai e dispersam-se pela América e Austrália. Inclusive seus pais e irmãos também fogem para o exterior. Por fim, sua esposa vende uma das casas e o governo confisca a outra. Assim, Duc perde tudo, como Jó na Bíblia.

Após 13 anos de trabalhos forçados, quando Duc é libertado, não tem sequer um telhado para se abrigar. “Estou nu como quando nasci”, lamenta consigo mesmo.  Mas o que mais fere sua alma é o fato de ninguém estar à sua espera, ninguém lhe dá as boas vindas, ninguém se alegra pela sua volta, sua libertação. Duc está sozinho. Sente uma grande angústia, vive a sua solidão como algo completamente desumano.

Um dia encontra por acaso um amigo numa rua de Saigon:  “– Que surpresa! – exclama o amigo. Não sabia que tinha sido liberado. Venha para minha casa!” Para não levantar suspeitas, os dois tomam caminhos diferentes. Duc fica a saber por esse amigo que a sua filha mais nova ainda está em Saigon, casada com um dirigente comunista. “– Ela é agora comunista, – diz-lhe o amigo. Por isso nunca te foi visitar durante esses anos. Mesmo assim, Duc resolve visitar a filha. Ela recebe-o educadamente, mas com frieza. No decorrer do encontro, da conversa, o clima torna-se tenso, quando a filha levanta-se e diz ao pai: “Treze anos de prisão não foram suficientes para mudar as suas ideias erradas! Pai, eu não tenho mais nada de comum consigo!”

Duc sente-se aniquilado. Naquele momento dá-se conta da enormidade da sua solidão, em meio à tragédia e escuridão. Tinha fracassado não só como soldado e como esposo, mas também como pai. “Até os meus filhos me rejeitam. Não tenho mais nada, como eu próprio sou um … nada.  Não vale a pena continuar a viver.  A vida não tem mais sentido para mim”.

Certo dia, um parente propõe pagar-lhe a fuga do Vietnã, com a condição de que leve consigo o seu filho Linh. Duc fica indeciso. Por que hei de fugir para o exterior? Teria a coragem e a força para recomeçar uma nova vida? Mas por fim, aceita o desafio, convencido de ter ainda uma missão na vida: contar ao mundo a desumanidade do sistema comunista.

Parte num barco com mais vinte pessoas. Mas a tragédia golpeia-o de novo. O barco é atacado por piratas que roubam tudo, atiram os homens ao mar, violentam as mulheres, e por fim, afundam o barco. O jovem Lihn morre afogado. Somente Duc e mais uns poucos se salvam a nado.

Agora Duc se encontra num campo de refugiados na Tailândia. Está muito desanimado, sente-se responsável pela morte de Lihn e, pior, sente raiva de Deus: “Qual a razão de tantas crueldades, tantas tragédias e sofrimentos? Por que tive que perder a família e ser reduzido a um nada?”

Desde que saíra do Vietnã, Duc nunca mais entrou numa igreja. Mas na noite de Natal, dirige-se até uma igreja com muitos outros refugiados. Uma frase das leituras da Missa impressiona-o: “De rico que era, Deus se fez pobre”. E Duc pensa: “Como eu”.

E são, sobretudo os cânticos de Natal que inundam a sua alma com um mar de recordações. Quantas vezes tinha participado da Missa da meia-noite com a sua família! Que felicidade naqueles anos! Agora tudo acabou. Após a Missa Duc senta-se debaixo de uma árvore na escuridão da noite e rompe em soluços, amargo e desolador.

No caminho de volta para a sua cabana de bambu, Duc encontra uma criança de dez anos, que chora sentada à beira da estrada.

— O que você faz aqui sozinho, menino? Onde você mora?

— Cheguei hoje aqui. As minhas irmãs foram raptadas pelos piratas. Quero a minha mãe. Quero voltar para casa.

Duc leva-o para a sua cabana e prepara-lhe um prato de arroz. No dia seguinte vai ao escritório das Nações Unidas e à igreja para pedir alimentos e roupas para o menino. E nos dias seguintes Duc encontra outras crianças sozinhas no campo de refugiados e passa a cuidar delas.

A partir daquela noite de Natal Duc sente-se renascer. Ocupado com as crianças, esquece os próprios sofrimentos. Em lugar da solidão, aos poucos entra-lhe alma adentro  uma alegria e uma serenidade nunca experimentadas antes.

Pouco a pouco, Nguyen Duc entende: “Desde que comecei a cuidar destas crianças abandonadas, sinto-me valorizado, sinto-me melhor. São valores como o amor e o serviço desinteressado aos outros que nos tornam felizes. E não as ‘coisas’ como a carreira, o dinheiro, a política, a fama. A tragédia desvestiu-me das coisas que enchiam a minha vida e criou em mim o vazio necessário para me revestir de caridade. Deus veio em meu socorro, Ele é que encaminhou tudo isso, é certo. Por isso, a minha vida agora tomou verdadeiro sentido ”.

Assim, Duc entendeu que a verdadeira felicidade não consistia na abundância dos bens, nem nas glorias da vida terrena; mas em saber discernir as mãos da Providência nos acontecimentos que ocorrem em nossas vidas, tendo a certeza de que o que Deus faz é o melhor para cada um de nós, mesmo que no momento presente nos pareça algo inexplicável. 

Fonte: Gildo Dominici, Redacção da revista Cruzada –  Braga – Portugal