Notas litúrgicas

A música sacra

“Entre os muitos e grandes dons de natureza com que Deus, em quem há harmonia de perfeita concórdia e suma coerência, enriqueceu o homem, criado à sua ‘imagem e semelhança’ (Cf. Gn 1, 26), deve-se incluir a música, que, juntamente com as outras artes liberais, contribui para o gozo espiritual e para o deleite da alma. Com razão assim escreve dela Agostinho: ‘A música, isto é, a doutrina e a arte de bem modular, como anúncio de grandes coisas foi concedida pela divina liberalidade aos mortais dotados de alma racional’ (Epist.161, De origine animae hominis, l, 2)” (Musicae Sacrae Disciplina, 2).

Em diversas passagens do Antigo Testamento podemos constatar como já na antiguidade a arte musical fora usada para o culto a Deus nas cerimônias religiosas. Essa tradição não foi abandonada pelos apóstolos como se pode notar na carta de São Paulo aos fiéis de Éfeso: “Sede cheios do Espírito Santo, recitando entre vós salmos e hinos e cânticos espirituais” (Ef 5, 18). Tertuliano nos deixa ainda um testemunho de que nem mesmo no período da perseguição sofrida pelos cristãos a música foi abandonada, pois nas assembleias “se leem as Escrituras, cantam-se salmos, promove-se a catequese” (Cf. Tertuliano, De anima, c. 9).

Nos séculos que se seguiram à perseguição, a Igreja foi aos poucos organizando e burilando o canto sacro. Com São Gregório Magno surgiu o Canto Gregoriano “que a Igreja romana considera coisa sua, porque recebido da antiga tradição e guardado no correr dos séculos sob a sua cuidadosa tutela e que propõe aos fiéis como coisa também deles […]. ” (Mediator Dei, 176).

“A Igreja também teve sempre em grande honra (o) canto polifônico, e de bom grado admitiu-o para maior decoro dos ritos sagrados nas próprias basílicas romanas e nas cerimônias pontifícias. Com isso se lhe aumentaram a eficácia e o esplendor, porque à voz dos cantores se aditou, além do órgão, o som de outros instrumentos musicais” (Musicae Sacrae Disciplina, 5).

“A tradição musical da Igreja é um tesouro de inestimável valor, que excede todas as outras expressões de arte, sobretudo porque o canto sagrado, intimamente unido com o texto, constitui parte necessária ou integrante da Liturgia solene. Não cessam de a enaltecer, quer a Sagrada Escritura, quer os Santos Padres e os Romanos Pontífices, que ainda recentemente, a começar em São Pio X, vincaram com mais insistência a função ministerial da música sacra no culto divino” (SC 112).

Santo Agostinho dizia que: “Cantar é próprio de quem ama” (Sermão 336, 1). Ora a Liturgia deve ser vista sobre o prisma do amor a Deus. Sendo assim, esse amor pode ser manifestado através do canto litúrgico. Por essa razão a Igreja incentiva vivamente o “uso do canto na celebração da Missa” (Cf. IGMR, 40).

“O progresso dessa arte musical, ao passo que mostra claramente o quanto a Igreja se tem preocupado com tornar cada vez mais esplêndido e agradável ao povo cristão o culto divino, por outra parte explica como a mesma Igreja tenha tido, as vezes, de impedir que se ultrapassem nesse terreno os justos limites, e que, juntamente com o verdadeiro progresso, se infiltrasse na música sacra, deturpando-a, certo quê de profano e de alheio ao culto sagrado” (Musicae Sacrae Disciplina, 6).

A título de orientação, deixaremos, a seguir, alguns tópicos contemplados na terceira edição da Instrução Geral sobre o Missal Romano, no que tange ao canto sacro:

  • 40. Dê-se grande valor ao uso do canto na celebração da Missa, tendo em vista a índole dos povos e as possibilidades de cada assembléia litúrgica. Ainda que não seja necessário cantar sempre todos os textos de per si destinados ao canto, por exemplo nas Missas dos dias de semana, deve-se zelar para que não falte o canto dos ministros e do povo nas celebrações dos domingos e festas de preceito. Na escolha das partes que de fato são cantadas, deve-se dar preferência às mais importantes e sobretudo àquelas que o sacerdote, o diácono, o leitor cantam com respostas do povo; ou então àquelas que o sacerdote e o povo devem proferir simultaneamente.
  • 41. Em igualdade de condições, o canto gregoriano ocupa o primeiro lugar, como próprio da Liturgia romana. Outros gêneros de música sacra, especialmente a polifonia, não são absolutamente excluídos, contanto que se harmonizem com o espírito da ação litúrgica e favoreçam a participação de todos os fiéis. Uma vez que se realizam sempre mais frequentemente reuniões internacionais de fiéis, convém que aprendam a cantar juntos em latim ao menos algumas partes do Ordinário da Missa, principalmente o símbolo da fé e a oração do Senhor, empregando-se melodias mais simples (Cf. SC, 54).
  • 32. A natureza das partes “presidenciais” exige que sejam proferidas em voz alta e distinta e por todos atentamente escutadas (Cf. Instrução Musicam sacram, 14). Por isso, enquanto o sacerdote as profere, não haja outras orações nem cantos, e calem-se o órgão e qualquer outro instrumento.
  • 102. Compete ao salmista proclamar o salmo ou outro cântico bíblico colocado entre as leituras. Para bem exercer a sua função é necessário que o salmista saiba salmodiar e tenha boa pronúncia e dicção.
  • 103. Entre os fiéis, exerce sua função litúrgica o grupo dos cantores ou coral. Cabe-lhe executar as partes que lhe são próprias, conforme os diversos gêneros de cantos, e promover a ativa participação dos fiéis no canto (Cf. Instrução Musicam sacram, 19). O que se diz do grupo de cantores vale também, com as devidas ressalvas, para os outros músicos, sobretudo para o organista.
  • 104. Convém que haja um cantor ou regente de coro para dirigir e sustentar o canto do povo. Mesmo não havendo um grupo de cantores, compete ao cantor dirigir os diversos cantos, com a devida participação do povo (Cf. Instrução Musicam sacram, 21).
  • 111. A preparação prática de cada celebração litúrgica, com espírito dócil e diligente, de acordo com o Missal e outros livros litúrgicos, seja feita de comum acordo por todos aqueles a quem diz respeito, seja quanto aos ritos, seja quanto ao aspecto pastoral e musical, sob a direção do reitor da igreja e ouvidos também os fiéis naquilo que diretamente lhes concerne. Contudo, ao sacerdote que preside a celebração, fica sempre o direito de dispor sobre aqueles elementos que lhe competem (Cf. SC, 22).
  • 312. O grupo dos cantores, segundo a disposição de cada igreja, deve ser colocado de tal forma que se manifeste claramente sua natureza, isto é, que faz parte da assembléia dos fiéis, onde desempenha um papel particular; que a execução de sua função se torne mais fácil; e possa cada um de seus membros facilmente obter uma participação plena na Missa, ou seja, participação sacramental (Cf. Instrução Musicam sacram, 23).
  • 313. O órgão e outros instrumentos musicais legitimamente aprovados sejam colocados em tal lugar que possam sustentar o canto do grupo de cantores e do povo e possam ser facilmente ouvidos, quando tocados sozinhos. Convém que o órgão seja abençoado antes de ser destinado ao uso litúrgico, segundo o rito descrito no Ritual Romano (Cf. Ritual de bênçãos, ed. Típica 1984, 1052-1067). No Tempo do Advento o órgão e outros instrumentos musicais sejam usados com moderação tal que convenha à índole desse tempo, sem contudo, antecipar aquela plena alegria do Natal do Senhor. No Tempo da Quaresma o toque do órgão e dos outros instrumentos é permitido somente para sustentar o canto. Excetuam-se, porém, o domingo “Laetare” (IV na Quaresma), as solenidades e as festas.
  • 393. Tendo em vista o lugar proeminente que o canto recebe na celebração, como parte necessária ou integrante da Liturgia (Cf. SC, 24), compete às Conferências dos Bispos aprovar melodias adequadas, sobretudo para os textos do Ordinário da Missa, para as respostas e aclamações do povo e para celebrações peculiares que ocorrem durante o ano litúrgico. Cabe-lhes igualmente decidir quanto aos gêneros musicais, melodias e instrumentos musicais, que possam ser admitidos no culto divino e, até que ponto realmente são adequados ou poderão adaptar-se ao uso sagrado.

 

Devemos lembrar que o Bispo diocesano é o principal dispenseiro dos mistérios de Deus na Igreja particular a ele confiada, é o moderador, o promotor e guarda de toda a vida litúrgica (Cf. Christus dominus, 15). Portanto lhe cabe o dever de cuidar para que cresça sempre mais a dignidade das celebrações, para cuja promoção muito contribui a beleza na música (Cf. IGMR 22).

Sobretudo, o grupo de cantores deve sempre atuar na Liturgia movido pelo amor a Deus e nunca por interesses humanos e particulares. São Paulo, ao falar da caridade, nos ensina como o amor a Deus deve transformar o nosso agir: “A caridade é paciente, a caridade é benigna. A caridade não é invejosa, não se ufana, não se ensoberbece. A caridade não faz nada de incoveniente, não busca os próprios interesses, não se irrita, não suspeita mal” (1Cor 13, 4-5).

 

Pe. Marcus Vinicius Moreira Falcão – Coordenar Diocesano de Liturgia

Pe. Lourenço Isidoro Ferronatto, EP – Mestre de Cerimônias da Diocese