Os benefícios das tentações

No deserto, Jesus não foi tentado apenas ao fim dos quarenta dias de jejum, mas ao longo de todo esse período. Quis Ele submeter­-Se a essa prova para nos dar exemplo, pois ninguém, por mais santo que seja, é imune à tentação.

II – Ensinamentos a tirar das tentações de Jesus Cristo

“1 Jesus, cheio do Espírito Santo, partiu do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto, 2 onde esteve quarenta dias, e foi tentado pelo demônio. Não comeu nada nestes dias; passados eles, teve fome.”

Este início do capítulo 4 vem envolto num insondável mistério. “Cheio do Espírito Santo…”. Ademais, “foi levado pelo Espírito…”. Por que levado? Outro Evan­gelista dirá conduzido, e um terceiro, impelido. São verbos ca­tegóricos que exprimem bem o poder empregado pelo Espírito Santo para agir em nossas almas quando eleitas para uma gran­de missão.

O Batismo deve ter-se realizado à altura de Jericó. Dali saindo, provavelmente subiu as encostas agrestes do Monte da Quarentena — Djebel-Qarantal —, composto de rochas averme­lhadas, com cinco cristas muito características, separadas por con­sideráveis ravinas. Ainda hoje encontram-se por aquelas pedras escavações feitas à mão, que o zelo fervoroso de contemplativos trabalhou para favorecer a solidão procurada por eles. No seu ponto mais alto, um observador pode percorrer o lindo pano­rama circular: ao norte, o Hermon; a oeste, a ter­ra de Judá; ao sul, o Mar Morto; a leste, o Monte Nebo (de onde Moisés avistou a Terra Prometida pouco antes de morrer), e os planaltos da Pereia. Naqueles tempos, por lá deviam vagar animais sel­vagens, tornando o lugar muito inóspito para qual­quer homem, ainda mais na situação de solidão em que se encontrava Je­sus, conforme nos relata Marcos: “Esteve em com­panhia dos animais selva­gens” (Mc 1, 13). Hoje, no cimo do monte ergue-se o convento de São João, ocupado por monges gregos que solicitamente acompanham os peregrinos até a gruta que teria sido frequentada pelo Salvador e chegam a indi­car, até mesmo, as marcas de seus divinos pés sobre as pedras do caminho.

Jesus foi tentado durante quarenta dias

São Lucas nos fala de tentações ao longo de quarenta dias, entretanto só menciona as três últimas delas. Como entender es­te fato? São Tomás assim no-lo responde: “Segundo a explicação de Beda, o Senhor foi tentado durante quarenta dias e quarenta noites. Mas não se trata daquelas tentações visíveis menciona­das por Mateus e Lucas, as quais ocorreram evidentemente após o jejum, mas de outros assaltos que Cristo pôde sofrer do diabo durante aquele tempo do jejum”.7 São Tomás de Aquino é harmônico, neste seu pa­recer, com muitos outros autores como, por exem­plo, São Justino, Oríge­nes, Santo Agostinho, se bem que outros tantos — como Suárez, Lagrange, Plummer — discordem deste ponto de vista.

São Mateus é ainda mais categórico ao dizer: “Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo demô­nio” (Mt 4, 1).

Na história da cria­ção, os primeiros a pade­cerem a prova da tenta­ção foram os Anjos e nem todos permaneceram fiéis… A seguir foram os nossos primeiros pais, e de seu pecado sofrerão as con­sequências todos os homens, até o fim do mundo. Mas Jesus era impecável e, apesar disso, pôde efetivamente ser tentado. N’Ele não existia o fomes peccati nem sequer a mais leve inclinação ao pecado, quer fosse pela carne ou até mesmo pelas pompas e vai­dades do mundo, por possuir, ademais, um juízo sereno e clarivi­dente. Porém, quanto às sugestões diabólicas externas, não havia o menor inconveniente em que viesse submeter-Se a elas volun­tariamente, pois, não sendo interiores e também por não haver a menor imperfeição em quem as padeceu, deixam a exclusividade de toda a malícia ao tentador.8

De acordo com os desígnios de Deus, “convinha [a Jesus] que Ele se tornasse em tudo semelhante aos seus irmãos” (Hb 2, 17), pois, para levar até os extremos limites seu amor por nós, ao “compadecer-Se de nossas fraquezas”, maior perfeição mani­festaria quando passasse “pelas mesmas provações que nós, com exceção do pecado” (Hb 4, 15).

Sobre a razão da oração e do jejum, baste-nos lembrar que “esta espécie de demônio só se pode expulsar à força de oração e de jejum” (Mt 17, 20).

 

(Extraído de: CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. A vigilância: uma esquecida virtude? In: O inédito sobre os Evangelhos. Città del Vaticano-São Paulo: LEV; Lumen Sapientiæ, 2013, v.5, p.179-186.)