O canto do rouxinol

Marco Antonio Machado[1]

 

O jornal O Globo do Rio de Janeiro publicou há poucos dias uma interessante reportagem de autoria de Graça Magalhães-Ruether sobre o rouxinol, cuja impressionante variedade de assobios, trinados e gorjeios faz dele um dos principais símbolos dos poetas, citado desde Homero e Virgílio, passando por William Shakespeare e outros.

 

Os cantos mais longos e complexos do rouxinol indicam uma alta musicalidade. Os melhores são capazes de entoar duzentos e sessenta tipos de cantos diferentes e cantar por duas horas sem repetir nenhum deles. Trata-se de algo realmente prodigioso, sobretudo se considerarmos que isto se encontra desde sempre no seu mais puro estado natural, tal e qual foi criado por Deus, sem qualquer possibilidade de crescimento e aperfeiçoamento através do aprendizado e do exercício racionais, como faz qualquer um que queira aprimorar os seus talentos, nem tampouco pelo adestramento, como se faz com os cães e cavalos, quando muito, talvez, pelo instintivo aguçamento dos reflexos adquiridos na luta diária pela sobrevivência.

É por tudo isto que o canto do rouxinol atrai desde tempos imemoriais as almas sensíveis, notadamente os poetas, escritores e compositores, tendo se tornado, por assim dizer, um paradigma da musicalidade. Entretanto, apesar de extenso, o seu repertório não deixa de ser limitado.

 

Isto me faz lembrar uma lenda medieval segundo a qual um rouxinol pousou à janela de um monge que meditava em sua cela a respeito do Céu. Pensava ele como deveria ser enfadonha a vida na eternidade, que, por nunca acabar, seria assaz repetitiva. Mas o rouxinol com o seu canto o arrebatou de tal forma que o fez deixar o mosteiro e segui-lo pela floresta adentro assim que ele bateu asas. Cada vez mais maravilhado, seguiu-o durante muito tempo até que o pequeno pássaro bateu asas para uma árvore mais distante e desapareceu.

 

O monge, então, pelo seu estado se deu conta do tempo que gastou na perseguição à canora criaturazinha de Deus. Esfarrapado e com crescidas barbas brancas, empreendeu a longa viagem de volta ao mosteiro. Lá chegando, ninguém o reconheceu, até que um velho confrade lembrou-se de uma história que ouvira a respeito de um monge que muitos anos atrás havia deixado o mosteiro em perseguição a um rouxinol e não mais voltara. Foram conferir os registros e pela descrição dada pelo insólito peregrino constataram que se tratava do próprio. Foi quando lhe foi revelado que ele gastara anos e anos seguindo um pássaro cujo canto, apesar de belo, era limitado, quando no Céu não haveria de se repetir não somente uma música, como também uma só nota musical.

 

No feio e conturbado mundo atual de vez em quando um rouxinol vem bater às nossas janelas, como aconteceu com a reportagem que nos brindou o “jornalão”, involuntário, porém verdadeiro regalo de Deus para nos lembrar que, apesar dos sombrios horizontes que o mesmo jornal todos os dias nos revela, Ele se faz presente e como prova, de vez em quando de forma mais acentuada como que subscreve a Sua Criação com mão indelével para que nunca nos esqueçamos que Quem pode o mais, pode o menos, não só porquê o ato de criar é muito maior do que o ato de manter, mas também porque é o menor dos homens uma criatura muito mais perfeita do que o mais virtuoso dos pássaros.

Como narra o Evangelho de São Mateus, 6-26, somos nós muito mais do que as aves do céu, que não semeiam , nem ceifam, nem fazem provisão nos celeiros, e contudo o Pai celeste as sustenta. Ele nos pede que tenhamos fé. Fé em primeiro lugar, que Ele é o Criador, e em segundo, que a Sua Providência nos sustenta a cada passo e a cada grão.

 

Não façamos, portanto, como os ateus e evolucionistas, que preferem enxergar no rouxinol um mero produto do acaso, como se tivesse o próprio acaso o poder de uma mão divina, porquanto à toda evidência um processo há necessariamente de ter tido um início e somente um Deus pode dar início a alguma coisa a partir do nada.

 

Felizes os que creem e esperam no Senhor


[1] O autor é advogado no Rio de Janeiro-RJ