O Leão de Flandres III

Alter Christus

A vida continua, e o futuro do novo José aparece em seu horizonte, quando, depois de 140 dias, o “R. W. Wood” aproava numa ilha que Deus parece ter esquecido no dia em que fez crescer espinhos e cardos: Honolulu, a ilha paradisíaca.

Lá tudo era belo e novo para o ex-camponês de Tremeloo.  Mais do que tudo, o povo era muito cordial e assaz propenso para a religião, dada a misticidade da etnia local. A flora era riquíssima e variada, mas, via-se que os colibris bem mais poderiam simbolizar o temperamento inconstante dos canacas[1] do que a firmeza leonina que Damião estava habituado a conviver em Fladres…

Em todo caso, em menos de um ano, o Bispo Maigret – homem de grande virtude – conferiu o diaconato e o presbiterado para o já, Padre Damião.

 

Verdadeira enculturação

Após algum tempo de missão, mil sofrimentos, abrolhos, sangue e lágrimas regaram a alma do padre flamengo – terra fértil para a graça atuar. Seria por demais longo relatar as aventuras que teve de passar em meio aos tubarões da ilha de Kohala; a superstição e magia negra que enfrentou na pessoa de um tal mago, de nome Mauae, também conhecido como “Tubarão Negro” pelos índios do local. Pior talvez tenha sido sua labuta aos pés do Kilauea, terrível vulcão ativo da ilha de Puna, em que, certa vez retirou da boca do fogo uma criança que ia ser sacrificada por seu pai, pois, segundo uma calúnia: “os deuses estavam descontentes com o grande homem branco”…

Nisto, o único de verdade era que o Padre Damião sobressaía completamente em meio aos índios, dada sua cor e grande corpulência. De fato, sua força viril era um grande auxílio em situações que mais se valia a potência do braço do que o número de faculdades que pudera ter feito – obviamente, a fortiori, com o auxílio da Graça Divina.

Em uma delas, o padre teve que aprender a participar de um jogo chamado de “lala”, no qual ganha quem consegue arremessar mais longe a “maica”, uma pedra arredondada e chata.

– Uma machadinha em Makua Kamiano– esse era o nome que os morenos chamavam o Pe. Damião, depois dele ter se dirigido a Puna em um barco que levava esse nome – disse um índio.

Outro animadamente replicou:

– Braços e pernas no Pai Branco!

– Meus filhos, começou a falar o padre, eu não tenho nada para apostar, porque eu vim pobre para junto de vós e tudo o que é meu é também vosso, vó bem o sabeis.

Eu aposto neste tiro o que já há muito tendes: meu coração! Mas caso eu ganhe, vós me deveis ajudar a construir uma nova igreja na praia. Estais de acordo?

– É por uma igreja, pensou Damião, mordeu os dentes, tomou respiração profunda e entesou todos os músculos para este tiro. Levantou a pedra, levou-a de volta à altura do ombro, girou-a em torno da cabeça, e arremeçou-a com toda a força dos seus músculos. Flechou um grande arco e caiu com ruído surdo na areia. Gritos de júbilo ecoaram. A “maica” tombara dois metros mais longe que o melhor lançamento dos canacas!

– Aloha, Makua Kamiano, clamavam os insulanos e congratulavam-se com o sacerdote. Vamos ajudá-lo a construir uma igreja nova e grande. Mesmo o vencido Kekela deu os parabéns ao Pe. Damião, colocando uma coroa de flores em seu pescoço e dizendo:

– Eu te coroo campeão do “lala” em Puna!

Assim, o apostolado do já maduro Leão de Flandres, ia sendo desenvolvido ao sopro do Espírito Santo, não sem poucos sofrimentos. Um em especial – que misteriosamente traçaria o futuro do santo – fora um decreto lançado pelo Departamento de Saúde em todo arquipélago do Havaí. Nele se lia:

“EXIGE-SE DE TODOS OS LEPROSOS QUE SE APRESENTEM DENTRO DE QUATORZE DIAS ÀS AUTORIDADES SANITÁRIAS DO GOVERNO PARA INSPEÇÃO E BANIMENTO FINAL PARA MOLOKAI”

Como tratar dos doentes que para lá fossem? O que fazer para reverter a situação?

 

Serás mártir…

Pouco tempo depois, em Wailuku, na ilha de Mauí, a convite do Pe. Leonore, o Bispo Maigret realiza uma cerimônia para consagrar uma nova igreja. Ao cabo da missa, estando vários sacerdotes reunidos, o bispo aproveitou para efetivar uma reunião clerical. Entre outros assuntos, enunciou uma das grandes dificuldades de seu vicariato; a evangelização da ilha de Molokai. Nesse capítulo o semblante do prelado obscureceu, pois o pouco trabalho pastoral que havia conseguido ser feito no lugar terrível, estava comprometido uma vez que os novos regulamentos do Departamento de Saúde obrigava qualquer pessoa que fosse a Molokai a lá permanecer para o resto da vida. Ao dizer isso, a voz do bispo vacilou. Ele próprio não poderia exigir de ninguém tal sacrifício.

No entanto, não foi preciso que fizesse novo apelo. Apenas terminara de falar, levantaram-se quatro padres, um dos quais Damião, pedindo permissão para viver e trabalhar entre os leprosos.

Os olhos de D. Maigret turvaram-se de lágrimas ao fixarem-se sobre cada um dos quatro rostos, inflamados de ardor e sinceridade. Era uma decisão dura de tomar. Fixou cada um daqueles rostos jovens que agora se erguiam rapidamente para ele, certo de que quem elegesse estava destinado a perder sua mocidade ante a selvagem invasão do flagelo.

O Pe. Damião percebeu a indecisão de seu superior.

– Monsenhor, disse ele, indicando seus jovens colegas, eis aqui vossos novos pioneiros. Qualquer um deles poderia facilmente encarregar-se de minha paróquia…

Invocou o argumento de que uma experiência como a sua seria necessária naquele lugar, e enquanto falava, o Bispo relembrava os feitos de coragem e o trabalho pioneiro de Puna e Kohala. Não havia dúvida de que esse era o homem indicado para Molokai. A mão episcopal pousou no ombro de Damião.

– Isto posto – Mons. Maigret exprimia-se numa voz surda e com dificuldade, como que consciente de estar pronunciando uma sentença de morte – é de tal natureza que eu não poderia impor a ninguém, mas é com alegria que aceito seu oferecimento.

Estava encerrado o caso. Apesar de todos saberem que Damião escolhera para si uma morte de mártir, não houve nenhuma tentativa de discurso ou elogios de qualquer espécie, excetuando talvez algum silencioso aperto de mão de despedida.

 

Fez-se fraco com os fracos

A morte antes da morte é como os antigos egípcios denominavam a lepra. É uma descrição apropriada. Através dos séculos ela tem sido conhecida como a mais incurável, a mais temida das moléstias.

O vale do Nilo, esse cenário onde a história tão faustosamente se pintou, parece ter sido o berço da odiada moléstia. Há cinquenta séculos passados – de acordo com as tradições conservadas nos hieróglifos de data um pouco posterior – manifestou-se e esteve a ponto de liquidar toda a população escrava do Sudão.

Conta uma lenda, que no ano 1375 A. C., Amenhotep IV, predecessor de Tutankhamen, tentou suplantar os cultos isolados de diferentes divindades por um novo credo que venerava a penas o suposto deus Sol. Mas a classe dos sacerdotes, venceu o ditador, invocando a punição “divina” sob forma de uma epidemia de lepra.

Na Europa não se sabe a época exata em que pela primeira vez se introduziu a lepra. É, no entanto, quase certo que não era conhecida até depois da invasão do Egito pelos romanos.

Cerca de 550 A. C. a praga alcançara a longínqua Irlanda, e tão rapidamente se alastrou que pouco depois estavam sendo abertos hospitais para leprosos na Inglaterra. Na Índia é mencionada em 1400 A. C. e na Pérsia em 800 A. C.

Dessa forma, não se sabe ao certo em que momento a peste maldita cruzou o Atlântico para morar no Havaí. De qualquer maneira, sabendo ou não de onde viera e para onde iria a hanseníase, foi em uma triste manhã do ano de 1873 que o padre belga desembarcou na praia batida de ressaca que contornava o mais espantoso reduto de leprosos; o célebre refúgio de Kalawao, na ilha cinzenta de Molokai.

Em seus ouvidos ecoavam as palavras da escritura: “Portanto todo aquele que estiver manchado de lepra, terá os seus vestidos descosidos, a cabeça descoberta, o rosto coberto com o seu vestido, e clamará que ele está imundo. Por todo tempo que estiver leproso, habitará só, fora do campo” (Lv 13, 45).

Damião estava só e sentia essa solidão. Era difícil sentir qualquer afinidade com os entes vivos que se moviam a sua volta. Alguns havia que a doença não chegara ainda a arruinar a um grau perceptível, mas a estes não via Damião; seus olhos, involuntariamente fascinados, não se despregavam daqueles horrores, pois neles reconhecia o seu provável destino, pois se sabia que o prazo máximo de vida de um leproso desembarcado em Molokai era calculado entre três e quatro anos.

 

O bom pastor

A situação da ilha era a mais deplorável possível. Tudo era repugnante nas cabanas sórdidas em que viviam os infelizes doentes. O Padre Damião foi conduzido ao aglomerado de choupanas provisórias, a cuja miserável reunião se dava, por cortesia, o nome de aldeia…

A razão maior do estado precário da higiene local, era – além da indolência insular – a dificuldade de se conseguir o líquido precioso; a água, pois a região de onde ela era trazida era muito distante da aldeia.

Mesmo assim, o grande homem branco visitava os doentes dando-lhes conforto por suas palavras, ministrou os sacramentos para muitos, e, nas horas vagas, trabalhava na construção de cabanas mais decentes. Tudo ele fazia sem demonstrar a menor ojeriza aos doentes. Sabia ele que isso era condição essencial para ter a confiança dos pobres enfermos.

Um fato marcou especialmente o início do apostolado do padre de Veuster. Certo dia, ao caminhar de volta para a aldeia, depois de encomendar um corpo de um leproso que tivera sua primeira felicidade ao chegar na ilha (a de morrer…), uma senhora de idade, que apesar de não ser católica, pediu ao padre que fosse atender seu filho que estava em fase terminal. Além disso, a própria anciã não era hanseniana.

Era um antro abominável aquele que ela o levou, uma cabana tão imunda que Damião nas horas que se seguiram fora obrigado a sair por várias vezes a fim de respirar um ar mais puro. A chuva infiltrara-se e, tal como no cemitério, ele sentiu os pés mergulhados na lama até os tornozelos. Vencendo, por um esforço de vontade, o asco que o invadia, o padre ajoelhou-se para mostrar-se ao doente que ainda estava consciente, apesar de tão arruinado pela doença que mais parecia massa informe de carne decomposta. O moribundo alegrou-se ao ver o homem branco, pois conservava sua fé e era de fato um católico fervoroso. Só lhe restavam dois dedos da mão direita, mas ainda assim conseguia apertar com extraordinária devoção as esfarrapadas folhas de um livro de orações manchado e sem capa.

O padre iniciou seu ofício e começou a ministrar a unção dos enfermos conforme o rito da época. Com o óleo sagrado untou as orelhas infectadas do leproso, depois os olhos, o nariz, e, de acordo com os ritos da Igreja, voltou-se para os pés do doente, onde se defrontou com um espetáculo que chegou a fazê-lo hesitar. Não havia mais vida em qualquer dos membros do leproso, a paralisia ganhara o que restava das duas pernas; no entanto os pés se moviam. Para empregar as palavras do próprio Damião: “… percebi que seus pés estavam sendo roídos pelos vermes”.

Os olhos do jovem estremeceram e cerraram-se pela última vez. Logo depois, oh maravilha! A mãe do rapaz pediu para que fosse recebida no seio da Igreja! Agora que o filho se fora não sentia mais necessidade de viver; verificara a paz trazida pela religião àquele leito de morte; e desejava um pouco dessa mesma calma e tranquilidade para o seu próprio fim, que ela, com aquele poder tão característico dos antigos polinésios de prever a própria morte, tinha certeza de não demorar. O sacerdote batizou-a no dia seguinte; duas horas depois ela morria, para ser enterrada, como pedira, ao lado do corpo do filho.

 

Os “rugidos” se fazem ouvir

Dentre as milhares de ocupações que povoavam a vida do vigoroso “Makua Kamiano”, uma das principais era a construção de caixões. Conta-se que, enquanto pessoalmente exercia as funções práticas do cemitério, foram cerca de dois mil caixões feitos pelo forte punho do Pe. Damião.

Enquanto trabalhava, mil planos fervilhavam em sua mente. Um deles era a construção de um aqueduto que pudesse trazer água às moradias da aldeia. Foi depois de muitas cartas e pedidos que conseguiu a doação dos canos para fazê-lo. O trabalho foi tão bem executado que cada casa já possuía uma torneira.

Outro ponto a ser melhorado era a construção de novas cabanas. Para isso, um fenômeno telúrico serviu de grande auxílio: um vendaval. Tudo foi lavado pela chuva não restou uma ripa em pé. Dessa maneira, conseguiu através de novas missivas, a vinda da madeira necessária para os trabalhos. Esses pedidos não podiam deixar de incomodar o Departamento de Saúde, uma vez que em pouco tempo, o mundo inteiro se inteirou da ida de um missionário católico para a “ilha maldita”. De fato, o “rugido do leão” estava reverberando pelos quatro cantos da terra… todo o orbe ouvia:

 

Enquanto tiver garras

e dentes, o leão,

Havendo ainda um flamengo

jamais o domarão!


[1] Indígena das ilhas dos mares do Sul, da Polinésia, Micronésia e Melanésia.