O Leão de Flandres IV

 

“Não me envergonho de trabalhar como pedreiro ou carpinteiro, quando é preciso para a glória de Deus. Nesses dez anos de missão construí uma igreja ou capela por ano.”

Assim escrevia aos pais o Pe. Damião no apogeu de seus anos em Molokai.

Os feitos do sacerdote belga foram tão heroicos e numerosos, que seria impossível relatar todos aqui sem ter de transformar essa sequência de artigos em uma enciclopédia dada a grande alma do Leão de Flandres.

Para sintetizar o “insintetizável”, basta voltar os olhos para o espírito sobrenatural de Damião. Em tudo procurava a maior glória de Deus, a começar pelas cerimônias litúrgicas. Pode parecer uma inverdade, mas, segundo consta, até um coral o padre conseguiu formar com os leprosos! Assemelhava-se aos cantores de Viena em sua rotatividade, mas, o único que desconsolava, era que a razão não estava baseada na maturidade de crianças, mas sim, na partida de adultos para a eternidade…

A pequena capela de Santa Filomena, que em seus primeiros dias utilizava para as celebrações, teve de ser ampliada diversas vezes. Várias comunidades iam brotando do solo infértil da ilha. Batizados, primeiras eucaristias, enfim, o apostolado sacramental do Padre Damião era tão frequente e bem ministrado quanto seu labor prático nas questões materiais referentes à melhoria da comunidade, constituindo assim, um equilíbrio perfeito do natural com o sobrenatural.

 

 

A alma de todo apostolado

Chamava a atenção especialmente o frequente uso do sacramento da penitência. A seriedade com que encarava as obrigações do confessionário é bem evidenciada na ocasião em que o Provincial
de sua Ordem o tentou visitar, no tempo em que se fazia mais severa a lei de isolamento. Nessa época, Damião levara vários meses sem nada avistar do mundo exterior, e nessa calma manhã deve ter-lhe sido bem vindo o apito que mostrou que um vaporzinho se aproximava de Kalawao. Correu a lançar ao mar uma canoa, e, com alguns leprosos mais apresentáveis nos remos, dirigiu-se para o navio onde, nesse mesmo instante, o capitão negava-se a aceder ao apelo do Provincial que queria descer ao menos por uma hora.

Ao chegar a canoa de Damião ao lado do vapor enquanto ele procurava a escada de corda, o capitão preveniu-o de que não subisse a bordo, lembrando-lhe a nova lei. O desapontado sacerdote protestou que pedia apenas alguns minutos a sós com o superior, a fim de fazer sua confissão. O capitão negou.

– Nesse caso, disse Damião, farei aqui mesmo a confissão.

A confusão da vida de bordo cessou e um silêncio súbito invadiu os tombadilhos ao ajoelhar-se ele sobre os cabos de seu minúsculo bote, que subia e descia com o balanço suave das ondas mansas.

Veio as frases finais de contrição, a sentença de penitência, o murmúrio da absolvição, e logo o padre, retomando sua posição, deu sinal à sua tripulação. Os remos mergulharam e o barco abriu caminho sobre a água quieta, esgueirando-se rápido para fora da sobra do vapor. Com exceção de uma saudação deliberada e silenciosa com o braço do Superior, Damião pareceu ignorar o navio.

Também, no dia-a-dia do padre se verificava sua robusta vida interior. Ao escurecer, ascendia sua lâmpada e lia o breviário. Algumas vezes, cansado de um dia difícil todo ele passado no interior do que se chamava de “hospital”, caminhava por entre as sepulturas do seu cemitério, recitando o terço e meditando “sobre aquela felicidade sem fim que tantos deles (os mortos) estão gozando”. Ele dizia em cartas a seu irmão Panfílio, que o cemitério e a cabana do moribundo eram seus melhores campos de meditação.

 

O fim que se aproxima

– Por que não descansa Padre Damião? Quis saber um de seus paroquianos.

– Descansar? Retorquiu ele. Não é hora de descansar, sobretudo agora, quando há tanto ainda por fazer e meu tempo é contado!

Estava fora de dúvida que contraíra a moléstia. Alguns meses antes da dramática declaração, derramara por acaso, enquanto se barbeava, uma chaleira de água fervendo sobre o pé descalço; e apesar de ter o líquido escaldante lhe cauterizado a pele, não sentira dor. A insensibilidade é um dos primeiros estágios da lepra, sintoma esse que imediatamente reconheceu. Por mais inquietação que lhe trouxesse o fato, silenciou, no entanto sobre ele até a visita à colônia do médico alemão Dr. Arning.

Mais tarde, escrevia ao bispo, escusando-se de não poder ir até o prelado em certa ocasião, dizendo: “Não posso ir porque estou atacado de lepra. Há sinais em minha face e orelha esquerda, e minhas sobrancelhas começam a cair. Em breve estarei totalmente desfigurado. Não tenho qualquer dúvida sobre a natureza da minha enfermidade, mas estou calmo e resignado e bastante feliz no meio de meu povo… Todo dia repito, do fundo do coração, ‘seja feita a Vossa vontade’”.

 

Deus não desampara os seus

Entretanto, em vários lugares do mundo a missão do Pe. Damião era difundida e levantava não poucos admiradores. Entre muitos, quatro foram os homens que se destacaram e efetivaram sua admiração em obras, dos quais dois eram sacerdotes. Todos quatro realizariam sua ambição e deviam chegar à ilha antes da morte do homem cujo exemplo inspirara. O primeiro a chegar, José Dutton, viria a ser, acima de todos, o amigo e confidente de Damião, e devia trabalhar na colônia durante quarenta e quatro anos seguidos.

Outro “Cireneu” de Damião foi um sacerdote que não pode auxiliar muito a ilha, pois apesar de se ter esforçado o mais possível, era ele mesmo leproso. Chamava-se Pe. Gregório Archambeaux. Era francês e contraíra a moléstia em uma das mais rêmotas ilhas do Pacífico Sul.

Durante alguns domingos este sacerdote pode celebrar Missa na capela de Kalaupapa, enquanto Damião oficiava em Kalawao; dois padres leprosos trazendo consolo divino, em extraordinário espetáculo de Fé, às suas congregações leprosas.

Mas, de Veuster não estava ainda satisfeito. Ao transpor o limiar de seu último ano de vida, aqueles ideais impostos pelo seu zelo e por sua impetuosidade natural, incitaram-no a um turbilhão de esforços, tão surpreendentes quanto assustadores para aqueles que o cercavam. Parecia fisicamente impossível que seu corpo, agora miseravelmente encarquilhado e emagrecido, pudesse obedecer ao regime imposto por aquele resoluto e indomável sacerdote. Seus dedos estavam reduzidos a chagas ulcerosas, abertas, inchadas e enormes. O nariz transformara-se em uma única cavidade. Completamente cego de um olho, sentia fugir-lhe aos poucos a vista do outro. Ao caminhar, mancava. Ao dizer a Missa, o povo o observava em ansiosa expectativa, pois algumas vezes, ao inclinar-se sobre o altar, tentando ainda seguir com fidelidade o ritual, parecia não poder mais erguer a cabeça e os ombros, tão fraco se tornara.

A morte lhe reclamava o corpo, mas ele não queria morrer. Seus negócios, isto é, os negócios de seu povo, ainda não estavam em ordem. E, foi então no decorrer deste ano – 1888 – que inesperadamente se suavizou seu caminho com a chegada, a apenas alguns meses de intervalo uns dos outros, de seis auxiliares. Nem tanto assim, na realidade, mas a Damião, que estivera tanto tempo só, parecera um regimento de Bons Samaritanos.

O primeiro a desembarcar na colônia foi o Pe. Lambert Conrady, que fora missionário entre os índios do Oregon. Depois, chegou da Austrália um frade, o Irmão James, enorme e trigueiro gigante irlandês. O seguinte foi o Pe. Wendelin Moellers, da mesma ordem de Damião. E, finalmente desembarcavam do “Lehua” Madre Mariana e as Irmãs Vicente McCormick e Leopoldina de Burns.

Assim, em pouco tempo foi construído um Abrigo para Meninos em Kalaupapa, que ficavam aos cuidados das Irmãs. Mais tarde outro abrigo seria edificado.

Um fato interessante sucedeu quando uma dessas irmãs perguntou a outra: “Que fará a senhora de mim, se me tornar leprosa?”.

– Tu nunca serás leprosa, foi a resposta calma que recebeu.

– Eu sei que todas aqui estamos expostas, mas sei também que fomos chamadas por Deus para o Seu serviço. Se respondemos, e estamos cumprindo nosso dever, Ele nos protegerá.

Depois de breve pausa, prosseguiu com deliberada firmeza:

– Lembra-te, minha filha, de que nunca ficarás leprosa, tu ou qualquer Irmã desta Ordem.

Afirmação arriscada esta, que médico algum teria ousado formular. Mas o tempo provou que ela tinha razão. As Irmãs Franciscanas prosseguem no seu esforço heroico em Molokai, mas nenhuma delas até hoje contraiu a medonha enfermidade!

 

Nunc dimittis

Passados o seu quadragésimo nono aniversário, começou Damião a preparar-se claramente para a morte.

– Gostaria de ser enterrado ao lado de minha igreja, disse aos seus assistentes, – debaixo da velha e copada árvore que me cobriu durante tantas noites antes de ter um abrigo.

Com a certeza de que seu trabalho seria retomado por outros, uma profunda tranquilidade veio suavizar seu incansável espírito, e não temia o fim.

Até os primeiros dias de março conseguia, por um esforço de vontade, celebrar a Missa. Depois o corpo atraiçoou-o de todo, e viu-se forçado a desistir. Não podendo se mover, toda manhã pedia do Irmão James e do Pe. Conrady que lhe transportassem o colchão para o canteiro de grama que se estendia a frente de sua casa. Era aí que os leprosos, “meu povo”, vinham vê-lo todos os dias.

Em uma manhã faz sua confissão geral ao Pe. Wendelin, que depois fez a sua a Damião, renovando ambos então os votos à sua Ordem. Depois o “pai dos leprosos” chamou seus assistentes para perto de seu leito, e agradeceu a Deus o fato de tê-los enviado.

– É este o meu Nunc dimittis. A missão dos leprosos está assegurada. Não precisam mais de mim. Em breve estarei subindo para o além.

Durante a noite acenderam as velas. Pela madrugada morreu, tal qual como o desejara, sem um frêmito, como se adormecesse. Na manhã cinzenta, enquanto Dutton e o Pe. Wendelin tentaram em vão acalmar o tumultuoso soluçar dos leprosos, o Irmão James informava à desolada Madre Mariana que o padre morrera em paz e que “de seu rosto tinham desaparecido todos os sinais de lepra!”[1].

Assim era coroada a santa obra do querido dos leprosos; o Makua Kamiano. Cumprira sua missão e assegurara o futuro de seus filhos espirituais.

“Aloha oe[2], Damião, valoroso soldado de Cristo, Salvação de Molokai, Honra da Bélgica, Glória da Igreja, Resplendor de Deus! Aloha oe!” Essas eram as palavras que encerravam a Missa Pontifical, celebrada em Honolulu, na mesma Catedral onde fora ordenado, pois, em 1936, pelo fato de o Rei dos Belgas ter pedido aos Estados Unidos a vinda das relíquias do santo para sua pátria, foi realizada uma última celebração já com o caixão contendo o corpo de São Damião de Veuster.

Sem dúvida, a honra da Bélgica, o Leão de Flandres, no céu intercede por todos nós, aos pés d’Aquele que é ao mesmo tempo o Cordeiro Inocente e o Leão de Judá, o Filho da Virgem! Que São Damião ajude a nos limpar da lepra de nossas almas, o pecado, e nos faça ser heróis na Fé como ele foi, e conquiste essa Molokai que é o século XXI para o Coração Sapiencial e Imaculado de Maria!

São Damião de Veuster, rogai por nós!

 

REFERÊNCIAS

 

FARROW, John. Damião o Leproso. Editora José Olympio. Rio de Janeiro, 1952.

 

HUENERMANN, Wilhelm. A vida extraordinária do Padre Damião. Edições Melhoramentos. São Paulo, 1953.

 

DEBROEY, Steven. Nós, os leprosos. Edições Loyola. São Paulo, 1983.


[1] “Antes de morto produziu-se em seu aspecto uma notável alternação, tanto que desapareceram por completo os tubérculos que lhe cobriam o rosto…”, escrevia o Irmão James, em uma carta a Clifford, datada de três dias depois da morte de Damião (15 de abril de 1889). O Pe. Wendelin igualmente menciona o mesmo fenômeno.

[2] Adeus.