O Julgamento das Formigas

Poucas histórias narradas em nosso Brasil são tão eloquentes quanto a questão das formigas que se deu há algum tempo no estado do Maranhão. Quem conta é o Pe. Manuel Bernardes, em sua obra “Nova Floresta”[1], em meio a diversos ensinamentos tão antigos e sempre novos que a Santa Igreja oferece aos seus filhos.

Outrora, na Província de Piedade, havia um próspero e observante convento de Frades Menores. O dia destes filhos de São Francisco era dividido entre períodos de trabalho, estudo e oração conforme mandava sua santa regra.

Certo dia, porém, aconteceu algo que veio romper a costumeira tranquilidade daqueles humildes religiosos. Foi então que lentamente, uma “legião” de formigas começou a estender o seu reino subterrâneo por todo o solo do convento. E, trabalhadoras incansáveis que são, não cessavam de mover a terra e ampliar suas galerias. Elas de tal maneira minaram os alicerces da dispensa do mosteiro que suas paredes já ameaçavam ruir. E se não bastasse tal transtorno, furtavam ainda a farinha trigo, ali guardada, que seria usada para fazer o pão para o abastecimento da comunidade.

Como o vasto número daqueles minúsculos operários trabalhava incansavelmente dia e noite, vieram os religiosos a passar necessidade. O provedor inconformado com tais delitos resolveu logo dar fim à tão terrível praga. Planejou um meio de exterminá-las.

Mas alguns frades de espírito mais conciliador tomaram a defesa daqueles pequenos e numerosos seres:

Nosso Pai Francisco, diziam, chamava todas as criaturas de irmãs. Irmão Sol, irmão lobo, irmã andorinha… Sendo assim, certamente tinha também por irmãs as pequenas formigas…

Uma verdadeira celeuma se formou em torno do assunto, fazendo surgir dois partidos. Um contra, outro a favor. Foi aí que um dos frades saiu com esta inusitada e original solução:

– Como entre nós não há consenso, convém que tal assunto seja levado a Juízo. Que seja indicado um advogado de acusação, bem como um de defesa das formigas. E, em nome da Suprema Equidade, sejam ouvidas as partes e dado o veredito.

A ideia agradou a todos. Na sala capitular foi instalado o Tribunal. O superior da Casa seria o Juiz. E doutos religiosos, nomeados defensores das partes.

Passado o tempo concedido para a preparação da defesa, chegou o dia ansiosamente por todos esperado. O juiz, bem como os advogados, tomaram posição na grande sala. Após uma oração pedindo a Justiça Divina que lhes inspirasse a melhor solução para o caso, foi dado início a sessão. Falou primeiramente o advogado daqueles piedosos frades:

– Digníssimo Juiz, nós, frades, conformados com a vida mendicante, vivemos de esmolas e também do fruto de nosso trabalho. Estas formigas, animais de espírito totalmente oposto ao do Evangelho, não fazem mais do que roubar. Desta forma, nosso Pai Francisco não teria por irmãs a quem somente procede como ladrões. E se não sendo suficiente, ainda com manifesta violência, pretendem expulsar-nos de nossa casa arruinando-a. Afirmo também que agem de má fé, pois apesar desta província ser imensa, vieram elas escolher justamente nossa dispensa para sua morada.

O que temos a pedir, continuou ele, é que seja decretada a pena capital. Que sejam todas mortas por algum ar pestilento ou afogadas por uma inundação. E que desta forma, para sempre sejam exterminadas de nosso recinto.

E na assistência, um burburinho se fez ouvir. O Juiz batendo o martelo sobre a mesa pediu silêncio. Em seguida, chamou o advogado de defesa:

Solenemente, levantou o procurador daquele negro e miúdo povo. Tomando posição na tribuna, iniciou a defesa:

– Digníssimo juiz e ilustres irmãos, em primeiro lugar afirmo que as formigas receberam o benefício da vida de seu Criador, tendo o direito natural de conservá-la por aqueles meios que o mesmo Senhor Deus lhes ensinou.

Segundo: Que elas, servindo ao Criador, dão aos homens exemplos das mais variadas virtudes, como a da prudência, trabalhando sem cessar e guardando para o tempo de necessidade… Da caridade, ajudando umas as outras nas dificuldades… De dedicação, carregando muitas vezes peso maior que as forças… E também de religião e piedade, dando sepultura aos mortos conforme observou o monge Malco em seus estudos…

Terceiro: É bem verdade que somos irmãos mais nobres e dignos que elas. Todavia, diante de Deus não somos mais do que formigas. E maior infidelidade praticamos quando ofendemos a Deus com a mais leve imperfeição do que elas furtando nossa farinha.

Quarto: As formigas já estavam na posse deste sítio antes dos autores do processo aqui chegarem. Portanto não poderão dele ser expulsas. Foi Deus que fez os pequenos e os grandes e para cada espécie designou um anjo para as conservar, não cabendo a nós o direito de exterminá-las.

Por último, concluímos que o acusador defenda a sua casa e farinha pelos meios humanos que souberem, posto que isto lhe é permitido. Porém que elas, sem embargo, têm direito de continuar as suas incursões por onde quiserem. Pois foi o mesmo Senhor que também criou as formigas é a Ele que pertence a terra e tudo o que nela encerra, conforme esta dito no Salmo 23: “Domini est terra, et plenitudo ejus…”

Sobre a defesa, houve réplicas e contra réplicas. De sorte que o advogado de acusação se viu apertado; posto que uma vez reduzida a contenda ao simples foro das criaturas; e conforme o espírito de humildade ensinado pelo Seráfico Pai Francisco, não estavam as formigas destituídas de direito.

O juiz tendo ouvido ambas as partes e revisado os autos, pôs-se com ânimo sincero na equidade. Após um momento de cerimonioso silêncio deu o veredito.

– Ilustre comunidade, Diante de Deus, o Justo Juiz, declaro: Dado a extensão destas terras, e que ambas as partes podem ser acomodadas sem mútuo prejuízo, ordeno que os frades sejam obrigados a assinalar dentro de sua propriedade um lugar competente para vivenda das formigas. E que elas deverão mudar logo de habitação, deixando as dependências do convento.

Visto, sobretudo que nós religiosos viemos aqui por obediência a semear a boa Nova do Evangelho, pois, conforme o Apóstolo, o operário é digno do seu sustento. Aos frades, cabe o direito de aqui permanecerem. Quanto às formigas, podem estas consignar-se em outra parte, por meio de seu trabalho e com menor dificuldade…

Lançada a sentença, foi outro religioso, a mandato do juiz, intimá-las em nome do Supremo Criador para que se retirassem. Ia ele proclamando na boca daqueles incontáveis formigueiros o resultado do Julgamento. Foi aí que um milagre aconteceu, mostrando como Deus se agradou com a atitude daqueles humildes frades.

Imediatamente… saíram a toda a pressa, milhares de milhares daqueles minúsculos animais que, formando longas e grossas fileiras, partiram em direção ao campo assinalado, abandonado suas antigas moradas e deixando livres de sua molestíssima presença aqueles Santos Religiosos, que renderam a Deus graças por tão admirável manifestação de seu poder e providência.


[1] Cf. BERNARDES, Pe. Manuel. Nova Floresta. Volume I, Título IV.


[1] Cf. BERNARDES, Pe. Manuel. Nova Floresta. Volume I, Título IV.