Orações na Arca de Noé

Dentre as diversas coisas que compõe, digamos assim; a vida miúda dos homens, uma salta aos olhos de maneira especial. Os franceses chamam-na de fait divers, que quer dizer fato diverso, um fato qualquer, sem importância.

Entretanto, nem todos tem tempo, tino ou inspiração para contar e/ou escrever sobre esses fatos ou ideias, que, apesar de não determinar uma vida, acabam ao menos por colori-la.

Houve alguém que com espírito apurado soube, durante a ocupação alemã, compor e por em linhas uma série de versos, atribuídos aos animais da Arca de Noé. Não sei se pode haver algo mais “fait divers” do que isto… Trata-se da poeta francesa Carmen Bernos de Gasztold que, depois da II Guerra Mundial, adoeceu e foi morar na Abadia Beneditina de Saint Louis du Temple, em Limon par Igny, na França, onde compôs mais alguns versos para um livro que foi publicado pela Abadia. Cada poema é uma prece simples e delicada, atribuída a um habitante da Arca. Publicamos cinco dos poemas que compõem o livro, em tradução de Carlos Drummond de Andrade e com ilustrações de Darel.

 

Carmen Bernos de Gasztold

 

Orações do Galo

Não Vos esqueçais, Senhor,

De que eu faço nascer o sol.

Sou Vosso servidor,

Mas a importância de minha função

Me obriga a uns tantos brilharetes e mundanismos.

Noblesse oblige

Apesar de tudo,

Sou Vosso servidor.

Não Vos esqueçais, Senhor,

De que eu faço nascer o sol.

Amém.

 

Oração do Boi

Dai-me tempo, meu Deus.

Os homens são tão afobados.

Fazei-os compreender que não posso

Andar depressa.

Dai-me tempo de comer.

Dai-me tempo de caminhar.

Dai-me tempo de dormir.

Dai-me tempo de pensar.

Amém.

 

Oração do gato

Senhor,

Eu sou o gato.

Não precisamente

Que tenha alguma coisa a Vos pedir.

Não.

Não peço nada a ninguém.

Mas se por acaso, Senhor, tivésseis

Nos celeiros de Vosso paraíso

Um ratinho branco

Ou um pires de leite,

Sei de alguém que aprecia essas coisas…

Amaldiçoareis, um dia,

A raça canina?

Ah, nesse caso, eu diria:

Amém.

 

Oração da borboleta

Senhor! Em que ponto eu estava?

Ah, sim, este sol, esta flor…

Obrigada! Vossa criação é uma beleza.

E este perfume de rosa!

Mas onde é mesmo que eu estava?

A gota do orvalho

Acende fogueiras no coração do lírio.

Eu precisava ir…

Nem sei mais!

O vento pintou suas fantasias

Em minhas asas.

Fantasias…

Em que ponto eu estava?

Ah, é verdade, Senhor,

Tinha uma coisa para Vos dizer:

Amém.

 

Oração do rato

Sou tão cinzento,

Meu Deus.

Lembrai-Vos de mim?

Sempre vigiado,

Sempre caçado,

Vou roendo mediocremente a vida.

Nunca ninguém me deu nada.

Por que me acusam de ser rato?

Não fostes Vós meu criador?

Só peço uma coisa: ficar escondido.

Dai-me apenas com que matar a fome

Longe das garras

Daquele demônio de olhos verdes.

Amém.