Encarnação, justiça e misericórdia.

O homem é criado por Deus e, sendo dotado de inteligência e vontade, pode ter impressões diversas em face à pluralidade de fatos que ocorrem em sua vida. Essa reação natural que o ser humano possui, pode ser mais pungente ou amena – causando eventualmente repulsa, fascínio ou talvez sob certo ponto de vista indiferença – conforme o próprio fato ou então de acordo com a disposição psicológica e espiritual do indivíduo ante o sucedido.

Assim, o homem vai, como que, criando uma verdadeira galeria de impressões matrizes – que podem ser tanto mais fiéis quanto maior for a proximidade de sua inocência primeira – que o ajudará a se reger até o fim de sua existência aqui na Terra.

Dentre essa variedade de impressões, provavelmente não se equivocaria quem pensasse que a “vivência” que mais pode causar encanto e admiração, é o efeito provindo dos mistérios.

E assim como um alpinista, que escala um monte altaneiro, e depois se dá conta que atrás deste, existe uma vastíssima cordilheira de montanhas frondosas que se ordenam em função de um grande pico que transcende todos os outros; assim também nós, ao vislumbrar a diversidade de mistérios que a ordem do universo oferece, nos damos conta de que existem aqueles que se elevam a tal altitude que tocam no sagrado.

Aproximando-se o fim do ano, o tempo do Advento e do Natal, inspiram – em meio às douradas nuvens dos mistérios – um esplendor muito particular, que sob o prisma de muitos teólogos, deitou seus raios de luz em toda a ordem da criação, ou seja, o Mistério da Encarnação.

Sendo assim, poderíamos ver essa realidade, não propriamente como um montanhista, mas através de um ofício distinto que seria próprio a de um ourives, que sabe analisar os detalhes das dimensões e do cunho das joias que passam por suas hábeis mãos. E, dentre os vários “brilhantes” que Deus semeou pela história, sem dúvida, a “pedra angular” foi a Encarnação do Verbo.

Santo Afonso comenta que embora o Filho de Deus previsse a vida penosa que teria de levar, submeteu-Se, contudo, de boa vontade ao decreto da Encarnação, ofereceu-Se mesmo a fazer-Se homem. E isso não só a fim de satisfazer plenamente à justiça divina, mas também para nos mostrar seu amor, e obrigar-nos a que O amemos sem reserva.[1]

Que significa a palavra “Encarnação”?

Conforme o Catecismo da Igreja Católica, a Igreja chama “Encarnação” ao mistério da admirável união da natureza divina e da natureza humana na única Pessoa divina do Verbo. Para realizar a nossa salvação, o Filho de Deus fez-se “carne” (Jo 1,14) tornando-se verdadeiramente homem. A fé na Encarnação é o sinal distintivo da fé cristã. [2]

A Igreja exprime o mistério da Encarnação afirmando que Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, com duas naturezas, a divina e a humana, que se não confundem, mas estão unidas na Pessoa do Verbo. Portanto, na humanidade de Jesus, tudo – milagres, sofrimento, morte – deve ser atribuído à sua Pessoa divina, que age através da natureza humana assumida.[3]

Dentro do plano de Deus para a História, Mons. João Scognamiglio Clá Dias comenta que a luta entre o Bem e o Mal recebeu para o lado do bem um grande reforço e decisivo com a Encarnação.[4]

São Bernardo[5], em sua contemplação sobre a condição do gênero humano depois do pecado do primeiro homem, vê travarem contenda a justiça e a misericórdia. “Estou perdida – diz a justiça – se Adão não for punido”. A misericórdia, ao contrário, replica: “Estou eu perdida, se o homem não for perdoado”.

Por isso, assim como São João Crisóstomo, digamos: “Ó Filho Unigênito e Verbo de Deus, Tu que és imortal, para a nossa salvação dignaste-Te se encarnar no seio da santa Mãe de Deus e sempre Virgem Maria. Tu que és Um da Santa Trindade, glorificado com o Pai e o Espírito Santo, salva-nos!”[6]


[1] Cf. Apud. CRISTINI, Pe. Thiago. Meditações para todos os dias do ano segundo Santo Afonso de Ligório. Tomo Primeiro. Friburgo (Alemanha), 1921. p. 6.

[2] Cf. Catecismo da Igreja Católica, 461-463 483.

[3] Idem. 464-469 479-481.

[4] DIAS, João Clá. Homilia do dia 4 de janeiro de 2006. Casa Mãe dos Arautos do Evangelho.

[5] Cf. Apud. CRISTINI, Pe. Thiago. Meditações para todos os dias do ano segundo Santo Afonso de Ligório. Tomo Primeiro. Friburgo (Alemanha), 1921. p. 6. Opusc. 63.

[6] Cf. Liturgia Bizantina de S. João Crisóstomo.