A vocação: Chamado de Deus, resposta do homem

Ir. Alejandro Javier de Saint Amant, EP

A vocação, especialmente a religiosa, é expressão da bondade divina. O fato de recebermos de Deus uma missão particular é garantia de não termos sido criados “por acaso”.

Todo homem se interroga sobre a finalidade de sua existência. Quem sou eu? Para que existo? Qual é meu projeto de vida, de acordo com as qualidades e apetências que sinto em mim?

Santo Inácio de Loyola – Paróquia de Santo Isidoro, Sevilha (Espanha)

Tais perguntas costumam aparecer já na adolescência, mas podem também surgir repentinamente, em qualquer momento da vida, sobretudo diante de situações inesperadas que nos levam a perguntar-nos: “Qual é afinal a minha vocação?”.

Em que consiste a verdadeira vocação

A palavra vocação provém do substantivo latino vocatio, que significa chamado, convocação.

Em linguagem familiar, ela costuma identificar-se com o desejo natural de uma pessoa de exercer determinada profissão, em função de um conjunto de qualidades que a torna especialmente apta para isso. De um jovem com senso prático e facilidade para as matemáticas se dirá que está chamado a ser engenheiro; de outro com especiais dotes artísticos se dirá que tem vocação de pintor, e assim por diante.

Essa correlação entre as qualidades pessoais e o rumo que damos à nossa existência não deixa de ser verídica, mas aqui analisaremos o tema sob o aspecto religioso e sobrenatural. Deus criou cada ser humano diferente dos demais, e o chama a exercer um papel único no conjunto da criação. Nisto consiste a nossa verdadeira vocação.

Todos os homens são chamados a serem filhos de Deus, a louvá-Lo, reverenciá-Lo e servi-Lo, e mediante isto salvar a alma, segundo a conhecida expressão de Santo Inácio de Loyola. Mas cada qual realiza esta vocação geral seguindo uma via particular: a maior parte dos homens exercendo uma profissão e formando uma família; outros, fazendo parte de uma comunidade religiosa; outros, por fim, santificando os demais por meio da administração dos Sacramentos.

Em qualquer um desses estados de vida, inclusive no laical, a vocação é a expressão do amor de Deus. Ela leva o homem a sair de si mesmo e ir ao seu encontro, perguntando-se: “O que quer Deus de mim?”.

Diálogo entre Deus e o escolhido

Quando a pessoa corresponde a esse chamado, produz-se uma união entre o humano e o divino, entre o tempo e a eternidade, entre a criatura e o Criador. É através da vocação específica de cada um que Deus entra em diálogo com o escolhido, dando-lhe oportunidade de traçar um projeto de vida orientado ao seu próprio bem e ao do conjunto do qual faz parte. Por meio da vocação o homem colabora, de alguma maneira, na construção do Reino de Deus no mundo.

Assim sendo, a vocação resulta numa maneira particular de a pessoa ver, apreciar e amar a Deus, que, em seguida, desdobra-se em ações concretas. Viver a vocação pessoal na plenitude contribui para a formação de uma sociedade verdadeiramente cristã.

O jovem rico do Evangelho – Pinacoteca Nacional de Bolonha (Itália)

Essa vocação deve ser entendida, portanto, a partir de uma ­dupla perspectiva: por parte Deus que chama, e por parte do homem, que deve responder com generosidade ao apelo divino. “Vocação e projeto de vida são as duas faces, divina e humana, de uma mesma realidade psicológica profundamente humana”.1

Mas como discernir o projeto de Deus para mim? A resposta a esta pergunta se obtém com muita oração e humildade de coração. Deus sempre dá as luzes necessárias para isto, sobretudo no caso daqueles que são chamados a seguir as vias da perfeição dentro do estado religioso.

Um chamado que exige resposta generosa

Essa interação entre o humano e o divino é notória em certas passagens das Sagradas Escrituras, nas quais encontramos homens e mulheres sendo chamados para uma missão concreta que os obriga a mudar por completo seu projeto inicial. Os planos da Providência se apresentam de modo repentino diante deles, obrigando-os a dar uma resposta imediata e radical.

Já nas origens do povo de ­Israel constatamos um caso típico em Abraão. Deus lhe ordenou “Sai de tua terra” (Gn 12, 1), e o patriarca “partiu, como o Senhor lhe havia dito” (Gn 12, 4). Obedeceu sem hesitar, não exigiu sinal divino nem colocou condições.

Diversa foi, entretanto, a reação de Moisés ao ouvir: “E agora, vai! Eu te envio ao faraó para que faças sair o meu povo, os israelitas, do Egito”. O peremptório mandato divino foi seguido de uma atitude dubitativa: “Quem sou eu para ir ao faraó e fazer sair os israelitas do Egito?” (Ex 3, 10-11).

Moisés sente-se incapaz de tão grande tarefa, mas Deus não aceita objeções. Para confirmar a origem divina do encargo, o escolhido recebe um sinal: “‘Joga a vara no chão’, disse o Senhor. Ele jogou-a no chão, e a vara se tornou uma serpente” (Ex 4, 3). A seguir, para ajudá-lo a ter a força necessária, o Senhor afirma: “Vai, pois, Eu estarei contigo quando falares, e ensinar-te-ei o que terás de dizer” (Ex 4, 12).

Abraão se dirige ao Vale de Canaã, por Antoine Étex – Igreja de São Pedro

Nestes dois exemplos fica claro que a vocação é sempre uma iniciativa de Deus e não depende das qualidades da criatura. Há um chamado que exige uma resposta generosa, baseada na fé e sem divagações, uma doação de si.

Cristo nos pede segui-Lo em uma vida nova

Também no Novo Testamento encontramos muitos exemplos de relatos vocacionais caracterizados, neste caso, por serem feitos em e através de Cristo. “Ele é quem dá significado a todos os chamados. Ele é o protagonista; tem consciência de sua missão de profeta e salvador e nos convida a dela participar”.

O Messias começa sua vida pública chamando pessoalmente Pedro e André, seus primeiros discípulos: “Vinde após Mim e vos farei pescadores de homens” (Mt 4, 19). Passando adiante, chama também Tiago e João (cf. Mt 4, 20). E no dia seguinte encontra Filipe e diz-lhe: “Segue-Me” (cf. Jo 1, 43).

Cristo usa a vocação como um meio para reunir em torno de Si os Doze, mas estende também a outros este apelo (cf. Mc 3, 13-14), inclusive aos pecadores (cf. Mt 9, 13). “Toda a sua pregação tem algo que envolve uma vocação: um chamado a segui-Lo numa vida nova”.

A resposta afirmativa a esse chamado vem acompanhada de uma ­garantia eterna: “Se queres ser perfeito, vai, vende teus bens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu. Depois, vem e segue-Me” (Mt 19, 21) – disse Jesus ao moço rico.

Um amigo exigente que indica metas altas

Para os convocados a seguirem os conselhos evangélicos na vida religiosa, Jesus faz uma proposta radical ante a qual todo o resto perde importância. A eles se aplicam com toda propriedade as palavras: “Se alguém Me quer seguir, renuncie-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me” (Mc 8, 34).

Moisés e a sarça ardente – Museu de Guadalajara (Espanha)

Isto significa estar pronto para suportar, pelo esquecimento do próprio eu por amor a Jesus, todas as dificuldades que possam surgir ao longo do caminho. “É dar a Ele a preferência sobre todas as coisas, sobre si mesmo, sobre a vida, dispostos para a morte”.

“Jesus é um amigo exigente que indica metas altas”,5 afirma São João Paulo II. Esta proposta, acrescenta, “pode parecer difícil e em alguns momentos pode mesmo meter medo. Mas – pergunto-vos – será ­melhor resignarem-se a uma vida sem ideais, a um mundo construído à vossa própria imagem e semelhança, ou, pelo contrário, procurar generosamente a verdade, o bem, a justiça, e trabalhar por um mundo que espelhe a beleza de Deus, mesmo que com o custo de se ter de enfrentar as provas que isso comporta?”.

A vocação é expressão da bondade divina

Embora o chamado seja individual, há nele uma dimensão comunitária que não pode deixar de ser lembrada neste artigo.

Tendo sido chamados por Deus à comunhão com seu Filho (cf. I Cor 1, 9), é necessário vivermos esta comunhão no Espírito, que anima o Corpo Místico de Cristo na diversidade dos seus dons (cf. I Cor 12, 4). A união de cada batizado com o Filho de Deus supõe a união de todos num mesmo Corpo (cf. At 4, 32), sob a direção dos pastores; quer dizer, a comunidade dos que foram chamados pelo Senhor, ou seja, a Igreja. Por isto Paulo afirma: “Sede um só corpo e um só espírito, assim como fostes chamados pela vossa vocação a uma só esperança” (Ef 4, 4).

É por meio do cumprimento da vocação que colocamos a serviço do próximo as qualidades a nós dadas por liberalidade. No final de nossas vidas teremos de prestar a Deus contas de nosso comportamento em relação aos outros e a nós mesmos, dos talentos recebidos em função de nossa vocação. “A Palavra de Deus nos assegura que este chamado é um plano de bem, de beleza e de paz pelo qual cada um de nós, com a ajuda do Senhor Jesus, poderá – se quiser – responder ao amor com o amor”.

Vocação de São Pedro e Santo André, por Juan de Roelas – Museu de Belas Artes de
Bilbao (Espanha)

A vocação é, portanto, expressão da bondade divina. O fato de recebermos uma missão particular é sinal de predileção, uma garantia de não termos sido criados “por acaso”, do zelo de Deus por nós e do seu desejo de salvar-nos.

“A vocação é, antes de tudo, dom de Deus: não se trata de escolher, mas de ser escolhido; é resposta a um amor que precede e acompanha. Para quem se torna dócil à vontade do Senhor, a vida se torna um bem recebido que tende, por natureza, a se transformar em oferta e dom”.8 Devemos responder generosamente ao chamado de Deus, com a certeza de estar realizando um ato liberador. “De fato, o dom de Deus não anula a liberdade do homem, antes a suscita, desenvolve e exige”.9 É nesta adesão à vontade divina que se encontra a verdadeira felicidade.

 (Revista Arautos do Evangelho, Março/2016, n. 171, pp. 32 à 35)