Por que Deus permite o mal?
Frequentemente ouve-se de pessoas com as quais ocorreu alguma desventura — doença, morte de um ente querido, etc. — a expressão:
“Por que Deus deixou isso acontecer?”
Isso acontece em geral em momentos em que se está tomado pelo choque da má notícia ou por sentir na própria pele. Acontece com frequência quando a fé apenas bruxoleia — ou não mais existe — na alma de quem assim se expressa. Esse problema é muito bem
explicado pelo Mons. João Clá, EP, fundador dos Arautos do Evangelho em sua obra “O inédito sobre os Evangelhos”, publicada pela Libreria Editrice Vaticana, e da qual reproduzimos o trecho a seguir.
A inexorável luta entre o bem e o mal
Reportemos a imaginação à eternidade, quando ainda não existia o tempo, pois Deus não havia criado o universo.
Ele tinha diante de Si a possibilidade de criar infinitos mundos diferentes desse em que vivemos, mas, por uma livre escolha de sua vontade, não quis fazê-lo. ⁽¹⁾ Muitos dentre eles, aos nossos olhos de meras criaturas, poderiam ter sido melhores do que o existente,
quiçá algum sem pecado e sem lutas…
Entretanto, o que Deus criou? Um universo cujas criaturas são boas e o conjunto delas é “muito bom” (Gn 1, 31). Logo no seu início, porém, todo esse bem criado passou a coexistir com o mal, a partir do momento em que a terça parte dos espíritos angélicos se uniu a
Lúcifer numa revolta contra Deus (cf. Ap 12, 4). Ao brado de São Miguel, os Anjos fiéis se levantaram em oposição aos rebeldes e “factum es prælium magnum in Cælo —uma grande batalha se travou no Céu” (Ap 12, 7).
Precipitado nas trevas eternas, o demônio tentou, como forma de manifestar sua obstinada oposição a Deus, desfigurar a beleza do plano da criação. Invejando a criatura humana, que ainda se conservava inocente e desfrutava das delícias do Paraíso e da
amizade com Deus, satanás se empenhou “em enganar os homens, para que não fossem exaltados e elevados ao lugar de onde ele caíra”. ⁽²⁾ Tomando o aspecto de uma encantadora serpente, astuta e habilidosa para exacerbar as paixões humanas, entrou ele em contato com Eva e lhe propôs a desobediência a Deus. Eva cedeu e levou Adão a segui-la no mesmo caminho.
Por que a serpente entrou no Paraíso?
Ora, por que Deus deixou entrar a serpente no Paraíso e permitiu que o mal se estabelecesse na face da Terra? Entre outras razões, ressaltemos três: em primeiro lugar, a
fim de nos enviar um Salvador que operasse a Redenção. Por isso, na Liturgia da Vigília Pascal se canta “ó culpa tão feliz que há merecido a graça de um tão grande Redentor!”. ⁽³⁾
Em segundo lugar, para evitar o amolecimento e a tibieza dos justos. A existência dos maus é o melhor adestramento para os bons, que podem, na defesa do bem, praticar o heroísmo da virtude para a glória de Deus e seu próprio mérito.
Por último, porque permitindo o mal, Deus quer um bem superior que dele resulta acidentalmente. ⁽⁴⁾ Depois do pecado, por exemplo, o inferno foi criado para os anjos que ofenderam a Deus e para os homens pecadores que, permanecendo impenitentes, após a morte também para lá iriam. Brilha assim no universo a justiça infinita do Criador, premiando os bons e castigando os maus. Sem isso Ele não manifestaria sua justiça punitiva, ⁽⁵⁾ nem transferiria ao universo o poder de castigar o mal que é praticado.
Uma luta estabelecida por Deus
Portanto, a partir do momento em que anjos e homens desobedeceram aos preceitos divinos, uma luta se iniciou entre o bem e o mal, entre os que procuram servir a Deus e os que se revoltam contra Ele, entre os que querem satisfazer suas paixões desregradas e aqueles que anelam viver do influxo da graça. Essa luta não tem trégua, pois foi estabelecida pelo próprio Criador: “Porei inimizades entre ti e a mulher, entre tua descendência e a dela” (Gn3, 15).
Luta tremenda, que atravessa os séculos com o enfrentamento constante de duas raças: a bendita estirpe de Jesus e Maria e a maldita linhagem de satanás.
Desde a expulsão do homem do Paraíso, vemos, então, como o filão dos maus parecia triunfar, pois o império do pecado na face da Terra, ao longo do Antigo Testamento, era quase universal. Através dos fios que tecem a História Sagrada, torna-se patente, mesmo entre o povo eleito, a ação deletéria desse filão de maus que, como denuncia sem véus Nosso Senhor, está involucrada nos crimes cometidos desde a morte de Abel até a chegada d’Ele (cf. Lc 11, 47-51).
Ora, esse aparente domínio do poder infernal teria fim com o cumprimento da promessa que Deus fizera aos nossos primeiros pais: “Ela te esmagará a cabeça” (Gn 3, 15).
Notas:
⁽¹⁾ Cf. ROYO MARÍN, OP, Antonio. Dios y su obra. Madrid: BAC,
1963, p.143.
⁽²⁾ SANTO AGOSTINHO. Enarratio in psalmum LVIII, sermo II, n.5.
In: Obras. Madrid: BAC, 1965, v.XX, p.489.
⁽³⁾ VIGÍLIA PASCAL. Proclamação da Páscoa. In: MISSAL
ROMANO. Trad. Portuguesa da 2a. edição típica para o Brasil
realizada e publicada pela CNBB com acréscimos aprovados pela
Sé Aposólica. 9.ed. São Paulo: Paulus, 2004, p.275
⁽⁴⁾ Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I, q.19, a.9.
⁽⁵⁾ Cf. Idem, I-II, q.79, a.4, ad 1.
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(Trecho da obra “O inédito sobre os Evangelhos”, Mons. João
Scognamiglio Clá Dias, EP, Libreria Editrice Vaticana, 2012, Vol. V,
p. 251-255)
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