O Leão de Flandres II

A esperança não engana…

Dies et nox!  Replicava o superior da Ordem dos Sagrados Corações ao seu secretário, que, dada a intimidade, lhe fazia um sinal com o relógio insinuando que era demasiado tarde para dar continuidade aos trabalhos de burocracia da instituição.

Em Paris, na Rua Picpus, todas as janelas do mosteiro, menos uma, estavam às escuras. O frio já era intenso nesse outono e o Padre Irlandês, Superior da Ordem hesitava em encerrar sua pilha de trabalhos.

A ordem estava em pleno florescimento. Ela ainda não completara um século de existência e já cobria o mundo de devotados missionários. Uma das novas metas era a evangelização do Tibet. Mas a “menina dos olhos” era outra: as Américas…

Entretanto, um pequeno problema constituía motivo de impaciência por parte do Padre Pedro, secretário do Superior: da casa de Picpus em Louvain um monge ainda minorista ousara, sem aprovação ou mesmo conhecimento de seus superiores imediatos, escrever diretamente ao Superior Geral, pedindo permissão para fazer parte da próxima expedição às longínquas Ilhas Sandwich.

– Deve ser punido e depressa! Pensava o Padre Pedro considerando a temeridade do jovem indisciplinado.

– Um tal desejo de servir não pode evidentemente ser grande crime, replicou o Superior. Admito que o rapaz seja impaciente, mas essa impetuosidade pode ser desculpada pela idade, ou antes, pela ausência dela.

– Só devagar se vai longe, citou o Padre Pedro com convicção.

– Por outro lado, continuou o outro, os homens sensatos fogem sempre ao adiamento. A rapidez é a mãe da fortuna, e aquele que não deixa nada para o dia seguinte leva um grande avanço. Festina lente[1] é uma máxima segura, e nosso jovem amigo provavelmente a conhece.

Vendo que de nada adiantava continuar, o Padre Pedro foi deixando o assunto morrer enquanto o Superior ia se preparando para encerrar outros afazeres.

Por fim, os dois se dirigem à porta do escritório e o Padre Irlandês olha para a noite através de sua janela, e com certo brilho na fisionomia diz:

– Tens razão, Pedro. O rapaz de Louvain merece e vai ser punido. Comunicarás ao seu Superior o castigo pela sua transgressão à disciplina. Será exilado, condenado a uma vida de servidão, isolamento e trabalho árduo. Em resumo, nós lhe concederemos o favor pelo qual tão arrojadamente bateu.

Em uma caligrafia grande e redonda o secretário vencido traçou estas palavras que iam deixar um eco, não só na história da Ordem, mas na história da civilização:

“PARA AS ILHAS SANDWICH – DAMIÃO DE VEUSTER”.

 

Os prolegômenos

José de Veuster era o sexto filho do casal Francisco e Ana Catarina de Veuster, nascido a 3 de janeiro de 1840 em uma aldeia de Tremeloo em Flandres na Bélgica. Desde cedo aprendera o valor da religião, dada à boa formação recebida de seus pais e, apesar de o pai ter intenções de instruí-lo como comerciante – no intuito de poder bem governar a fazenda e os campos que a família possuía – José pendia sempre seu olhar para a Igreja. Seu coração palpitava mais com os sinos da Matriz do que com o bater de malhos que a vida no campo fazia soar ao vento puro de Flandres.

Sua adolescência foi marcada com a oração e o choque que sua personalidade produzira nos meios colegiais, tendo como primeiro marco um fioretti muito pitoresco.

Quando ainda era um menino de oito anos, certo dia, durante as aulas na escolinha de Tremeloo, o professor Werchtern decidiu fazer uma aula conversada sobre a literatura flamenga. Apanhou um livro antigo de capa dura que levava um título imponente: “O Leão de Flandres”. Tratava-se de um compêndio das histórias dos heróis da pátria.

Nesse instante, no coração de todos ecoava a velha canção flamenga:

 

Zig zullen hem niet temmen,

Den fieren Vlamschen Leeuw!

O bravo leão de Flandres,

jamais se há de domá-lo

 

Enquanto tiver garras

e dentes, o leão,

Havendo ainda um flamengo

jamais o domarão!

 

Assim, a classe toda ouvia as histórias como um fiel escuta o Evangelho dominical. No fim, depois do professor ter narrado a vida combativa de um Conde Roberto, o leão valente; as peripécias do tecelão de Bruges e a célebre batalha de Güldensporen, em que os flamengos abateram os elegantes cavaleiros franceses, porque Flandres devia pertencer aos flamengos e a seu leão e não aos franceses; um longo suspiro seguido da seguinte conclamação do mestre se fez ouvir:

– Este é o livro dos heróis de Flandres. Enquanto houver carvalhos em terra flamenga, também deverão brotar heróis em solo flamengo.

Mal o professor proferira a frase, o pequeno José empinou-se e gritou:

– Também quero ser herói!

Os demais alunos deram grande gargalhada. O professor, porém, com semblante sério, disse:

– Prouvera Deus, José de Veuster; os heróis não deverão faltar em terras flamengas.

Ali estava o sinal em José: um genuíno filho da luz!

Os anos se passaram e, depois de receber alguma formação em sua aldeota, seu pai, Francisco de Veuster, decreta que para o bem e prosperidade da família, José deveria receber uma formação melhor estudando com os valões!

Para José, a ordem do pai soara como um anúncio do fim do mundo. Dado o patriotismo que os flamengos possuíam, o último que desejavam era estar com seus vizinhos, os franceses.

Enfim, depois de muito relutar internamente, o filho do campo rezou:

– Senhor, aqui me tendes, fazei de mim o que vos aprouver!

 

O bravo leão de Flandres

Os dias se passam, de Veuster entra afinal na Escola de Comércio de Braine le Comte, na França. De fato, sua presença era motivo de troça para os colegas… até certo dia…

Havia na classe alguns valões levianos ao quadro negro, que gritavam e bagunçavam antes do professor chegar. Um deles desenhava com mão hábil uma cara, que exornou com longas orelhas de burro. Escreveu por baixo, com letras elegantes: O “Leão de Flandres”.

– Lá vem ele! Disse, de repente, a voz fina de guarda junto da porta. Sereno, José de Veuster entrou na sala.

– Vê lá teu retrato, flamengo! Anunciou a sua obra o artista genial.

Com as mãos no bolso, aproximou-se José do quadro negro, contemplou por instantes a caricatura e disse:

– Realmente está bem desenhado! Preciso pagar-lhe a gratificação.

Em seguida, agarrou o artista pelos cabelos, lançou mão de uma régua do primeiro banco, subjugou-o e vibrou-lhe com ímpeto a régua sobre o assento, enquanto, no mesmo ritmo, assobiava entre os dentes:

 

Enquanto tiver garras

e dentes, o leão,

Havendo ainda um flamengo

jamais o domarão!

 

O valão gritou e esperneou, mas José de Veuster não o largou até ter dado a última pancada ao compasso da canção flamenga.

– Bem, rapaz, disse em seguida, acho que estava bem desenhado. Por felicidade sua, só tomei o estribilho. Previna-se para o futuro, que o canto possui três estrofes!

– Que força tem este camponês! Gaguejou um dos jovens, perplexo.

– Realmente, uma força brutal! Acedeu um segundo.

– Ter tamanha força já não é elegante!

– Mas prático – disse, sorrindo o flamengo, dirigindo-se com calma para seu lugar…

 

A vocação o chama

Tendo os estudos concluídos, cada vez mais José de Veuster sentia o desejo de seguir a via religiosa. Seu irmão mais velho, Panfílio, era um dos culpados desse desejo. Entretanto, com o tempo, toda a família foi percebendo que o que passava no coração de José não podia ser fruto de uma mera influência de outrem: era vocação.

Foi assim que perto dos vinte anos, depois de muitas dificuldades postas pela Ordem dos Sagrados Corações – dado o costume de se receber noviços com idade menos madura –, de Veuster consegue convencer seu pai a conversar com o superior da casa de Louvain.

– Peço para ser admitido entre os irmãos noviços, disse José. O ancião perguntou:

– E o que diz seu pai a respeito?

– Senhor Padre, falou o camponês com voz mal segura, há muitos anos que alimentei a esperança de ter neste meu filho um sucessor para quando eu fosse velho. Por isso me opus até à hora presente. Agora, porém, acho que Deus o está chamando. Seja, pois, em nome de Deus!

Ao rústico homem umedeceram-se os olhos. Passou a mão por eles, esfregando as lágrimas, e disse com um sorriso:

– Seja como Deus quer, pois não quero ser como o faraó, que não deixa partir Moisés, nem desejo atrair as dez pragas sobre mim, meu gado e meu campo.

E ali permaneceu José de Veuster no claustro de Louvain. Logo recebe um novo nome: Irmão Damião.

Os anos se passam e no dia de Todos os Santos do ano de 1863, em Bremerhaven, Damião, foi atendido pelo Superior Geral da Ordem: no lugar de seu irmão Panfílio – que contraíra Tifo – subiu a bordo do trimastro “R. W. Wood”, que deveria levar os missionários para as ilhas do Havaí…


[1] Do latim “apressa-te devagar”. Frase atribuída a Augusto, que quer dizer que o trabalho executado devagar é melhor do que quando feito apressadamente.