Sobre uma raiz iníqua nascem as flores primeiras dos mártires

No século II a.C, quando subiu ao trono da Síria Antíoco IV Epífanes — um “homem vil” (Dn 11, 21), verdadeira “raiz de pecado” (I Mac 1, 11) —, desencadeou-se uma furiosa perseguição contra a religião de Israel. Insurgiram-se contra o selêucida os Macabeus, de linhagem sacerdotal, obtendo grandes vitórias e adquirindo para a nação judaica um poder e uma glória comparáveis aos dos tempos antigos. Assim a realeza davídica transferiu-se para a tribo de Levi. Os descendentes desses heróis, chamados Hasmoneus, passaram a ocupar simultaneamente a cátedra do supremo pontificado e o trono real.

As circunstâncias mudaram quando, alegando as lutas fratricidas nascidas no próprio seio da família dos Hasmoneus, Roma interveio pelas armas e o imperador Marco Antônio outorgou o título de rei dos judeus a um estrangeiro, detestado pela nação por pertencer ao povo Idumeu, inimigo irreconciliável de Israel: Herodes. Não tardou o novo monarca em demonstrar serem todas as suas ações e atos administrativos movidos por orgulhosa cobiça. Qual não foi o sobressalto desse tirano sanguinário quando amargurado pelo peso dos crimes sem conta que cometera, viu chegar a Jerusalém uma suntuosa caravana vinda do Oriente e três magos que perguntavam pelo “rei dos judeus que acabava de nascer” (Mt 2, 2)! Imediatamente a inquietude e a perturbação se apoderaram de seu coração: julgou ameaçada a estabilidade de seu trono.

Cego de orgulho, aquele iníquo monarca acreditou ter poder suficiente para opor-se ao plano divino e mudar, segundo seus caprichos, aquilo que Deus determinara desde toda a eternidade e anunciara pela boca de seus mensageiros! Assim é que deu largas à sua cólera e deliberou perpetrar o crime mais horrendo de sua vida: para que o pequeno Rei dos judeus não escapasse à sua vingança, deveriam perecer todos os infantes de Belém e das redondezas.

Grande foi a consternação na cidade de Belém. Logo após ter alcançado a honra de receber o Esperado das nações, suas casas se encheram de cadáveres e pelas ruas ecoaram os gritos de dor das mães, misturados aos gemidos das crianças. Cena atroz e pungente: ver os pequeninos arrancados dos braços maternos e transpassados pelas espadas dos mercenários.

 

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Chama-nos a atenção o paradoxo entre as figuras de Herodes e a dos Santos Inocentes: de um lado encontramos a imagem de um homem incrédulo, apegado ao poder, cioso de sua autoridade, julgando todos os fatos sob o prisma de medíocres interesses; no extremo oposto, crianças inocentes, confiantes e admirativas, incapazes de fazer algum mal.

Ora, que frutos colheu Herodes por tamanha iniquidade? E aos meninos assassinados, de que lhes adiantou terem nascido se lhes foi tirada a oportunidade de viver? A história, iluminada pela fé nos responde.

Quanto ao que sucedeu a Herodes, narra-nos a Legenda Áurea[1]: “Herodes não tardou a ser punido por seu ato, pois (diz Macróbio [2] e também uma crônica) um neto seu que estava sob os cuidados de uma ama foi morto com outras crianças pelos carrascos. Foi então consu­mada a palavra do profeta, de que prantos e gemidos de mães seriam ouvidos em Roma, isto é, no centro do poder”.

Deus, Juiz justíssimo, não permitiu que a tremenda crueldade de Herodes ficasse impune: “Chegando aos setenta anos de idade, Herodes caiu gravemente enfermo: era minado por uma febre fortíssima, seus membros apodre­ciam, suas dores eram incessantes, tinha os pés inchados, o corpo roído por vermes, exalava um odor fétido intolerável, sua respiração era curta e seus suspiros contínuos. Por ordem dos médicos foi tomar um banho de azeite, mas saiu dele quase morto. Tendo ouvido dizer que os judeus ficariam contentes ao vê-lo morrer, mandou prender os jovens mais nobres de toda a Judéia e disse a sua irmã Salomé: “Sei que os judeus se regozijarão com minha morte, mas se você obedecer minhas ordens muitas lágrimas correrão quando ela acontecer. Assim que eu morrer, mate todos os que mantenho presos, a fim de que toda a Judéia chore”. Poucos dias depois Herodes morreu.

Sobre os meninos inocentes, encontramos a seu respeito nos salmos do rei profeta, Davi: “O perfeito louvor vos é dado pelos lábios dos mais pequeninos, de crianças que a mãe amamenta; eis a força que opondes aos maus, reduzindo o inimigo ao silêncio” (Sl 8,3). O sangue deles subiu ao Céu como sacrifício puro e agradável de “cordeiros sem mancha” (cf. Ex 12, 2-5) oferecido em honra do Divino Infante recém-nascido.

Por que, pergunta, São Bernardo, “haverá quem duvide das coroas dos Inocentes?”. E acrescenta: “É menor, por acaso, a piedade de Cristo que a impiedade de Herodes, para crer que este pudesse entregar alguns inocentes à morte e Cristo não pudesse coroar aqueles que foram mortos por Ele? […] Estes são, verdadeiramente teus mártires, ó Deus, para que resplandeça com maior evidência o privilégio de tua graça naqueles em quem nem o homem nem o anjo descobrem mérito algum”.[3]

Afirma, ainda, o Papa São Leão I, em um de seus sermões: “Cristo ama a infância, que assumiu em primeiro lugar, tanto na alma quanto no corpo. Cristo ama a infância, mestra da humildade, regra da inocência, modelo de mansidão. Cristo ama a infância, para a qual orienta o procedimento dos adultos e reconduz a idade dos anciãos. Ele atrai ao exemplo dela aqueles que eleva ao reino eterno”.[4] Os meninos que brincavam aos pés de suas mães deixaram seus inocentes jogos para irem brincar aos pés do trono de Deus!

Na festa litúrgica dos Santos Inocentes, peçamos a Deus que, a exemplos deles, tenhamos um coração puro e possamos professar com atos a fé que recebemos da Igreja, afim de que um dia possamos merecer ouvir dos lábios do Salvador estas palavras: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a fundação do mundo” (Mt 25,34).


[1] Cf. LEGENDA ÁUREA, Vida de santos. Jacopo de Varazze. Companhia das Letras. 2003.

[2] Ambrósio Macróbio Teodósio, gramático e filósofo romano do século V, autor de um comentário ao Sonho de Cipido de Cícero e autor de Saturnália, obra consagrada a Virgílio.

[3] Cf. SAN BERNARDO DE CLARAVAL. Obras completas. Madrid: BAC, 1953, t.I, p.292-293.

[4] Cf. SAINT LÉON LE GRAND. Sermo VII in Epiphaniae Solemnitate. In: Sermons. 2.ed. Paris: Du Cerf, 1964, v.I, p.280.