Via Sacra: a Paixão trajada de Pulcro

Conveniência da Encarnação e Paixão de Nosso Senhor

Para os olhos humanos, não é fácil aceitar e, ou melhor, querer a morte para si. Ainda mais grave seria conceber um gênero de suplício, que seja aos olhos do mundo, a ignomínia por excelência.

Entretanto, Deus não vê as coisas assim.

Segundo o Catecismo da Igreja Católica[1], a morte violenta de Jesus não foi o resultado do acaso num conjunto infeliz de circunstâncias. Ela faz parte do mistério dos desígnios de Deus, como explica São Pedro aos judeus de Jerusalém já em seu primeiro discurso de Pentecostes: “Ele foi entregue segundo o desígnio determinado e a presciência de Deus” (At 2, 23). Esta linguagem bíblica não significa que os que “entregaram Jesus” tenham sido apenas executores passivos de um roteiro escrito de antemão por Deus. Quem pensasse assim, poderia ser tido determinista e pouco provido de espiritualidade.

Para Deus, todos os momentos do tempo estão presentes em sua atualidade. Ele estabelece, portanto, seu projeto eterno de salvação através de sua graça: “De fato, contra teu servo Jesus, a quem ungiste, verdadeiramente coligaram-se, nesta cidade, Herodes e Pôncio Pilatos com as nações pagãs e os povos de Israel, para executar tudo o que, em teu poder e sabedoria, havias predeterminado” (At 5, 27-28). Deus permitiu os atos nascidos de sua cegueira, a fim de realizar aquilo que a teologia chama de “projeto de salvação”[2].

Segundo o Apóstolo, o Filho de Deus, que “desceu do Céu não para fazer sua vontade, mas a do Pai que o enviou” (Jo 6,38), “diz ao entrar no mundo: …Eis-me aqui… eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade… Graças a esta vontade é que somos santificados pela oferenda do corpo de Jesus Cristo, realizada uma vez por todas” (Hb 10, 5-10). Vê-se que desde o primeiro instante de sua Encarnação, o Filho desposa o desígnio de salvação divino em sua missão redentora: “O Pai me ama porque dou a minha vida” (Jo 10, 17). “O mundo saberá que amo o Pai e faço como o Pai me ordenou” (Jo 14, 31).

Este desejo de desposar o desígnio de amor redentor de seu Pai anima toda a vida de Jesus, pois sua Paixão redentora é a razão de ser de sua Encarnação: “Pai, salva-me desta hora. Mas foi precisamente para esta hora que eu vim” (Jo 12, 27). “Deixarei eu de beber o cálice que meu Pai me deu?” (Jo 18, 11). E, ainda na cruz, antes que tudo fosse “consumado” (Jo 19, 30), ele disse: “Tenho sede” (Jo 19, 28).

Dessa forma, vê-se como Deus, por amor ao gênero humano, não poupou seu Filho, entregando-O a morte, e morte de cruz (Fl 2, 8).

A esse respeito, Santo Tomás de Aquino comenta que o gênero de morte escolhido por Deus para seu Filho [a crucifixão] era o mais conveniente para satisfazer o pecado do primeiro homem, que consistiu em tomar a maçã da árvore proibida, contra o mandato de Deus. E por isso foi conveniente que Cristo, a fim de satisfazer por aquele pecado, tolerasse ser pregado em um madeiro, como se restituísse o que Adão havia roubado.[3]

E Santo Agostinho arremata: “Adão desprezou o preceito, comendo da árvore; mas o que Adão perdeu, o encontrou Cristo na Cruz”.[4]

 Aspectos científicos da paixão

Entretanto, há quem pensa ser a Paixão de Cristo uma balela, exagero ou até invenção da “neurose cristã”. Para dar uma ideia mais apurada sobre os suplícios que o Filho de Deus quis passar por essa Terra, segue uma síntese científica de um relato sobre o fim da vida de Jesus em que o Dr. Pierre Barbet, cirurgião do Hospital Saint Joseph de Paris, analisa através do Santo Sudário o aspecto fisiológico do que sucedeu no Calvário:

“Tudo o que acabamos de examinar, constitui, portanto, causas de enfraquecimento e de dor, que muito deve ter contribuído para acelerar a agonia. Mas ainda não encontramos uma causa deter­minante da morte, uma causa que, sem tergiversações, independentemen­te das circunstâncias variáveis, matasse sempre, cedo ou tarde, os crucificados. Esta causa, digamo-lo logo, era a asfixia. Os cru­cificados morriam todos asfixiados”[5].

“Resulta deste testemunho, como também da observação, graças a Deus, menos prolongada de Hynek, que a suspensão pelas mãos acarreta asfixia com contrações generalizadas, de acordo com as previsões de Le Bec. Os crucificados, pois, morriam todos de asfixia, após longo período de luta”[6].

“Toda a agonia se passava na alternativa de abatimentos e soerguimentos, de asfixia e de respira­ção. Disso temos a prova material no Santo Sudário, onde podemos assinalar um duplo fluxo de sangue vertical que sai da chaga da mão, com um afastamento angular de alguns graus. Um correspon­de à posição de abatimento e o outro à de soerguimento”[7].

“Eis, pois, a meu ver, claramente elucidadas, sob o ponto de vista humano, científico, as causas da morte de Jesus: Causas pre­disponentes, que são múltiplas e O levaram, fisicamente diminuído e esgotado, ao mais terrível suplício que já conseguiu inventar a malícia dos homens.

1-   Uma causa determinante, final, imediata: a asfixia, que causava infalivelmente a morte.

Ou antes, eis todas as circunstâncias de nocividade maior ou menor, no meio das quais Ele morreu, por meio das quais quis morrer. Porque assim o predizia Isaías (53, 7): “Oblatus est quia ipse voluit:  Foi oferecido (em sacrifício) porque Ele próprio o quis”[8].

“Quando se relê a história evangélica com um olho clínico, cada vez mais se fica impressionado pela maneira como Ele domina todos estes acontecimentos. Aceitou Ele, plena e voluntariamente, todas as consequências da natureza humana assumida, por Seu consenti­mento, à vontade do Pai, inclusive todas as destruições que os traumatismos podiam produzir em nosso pobre frangalho de carne.

Mas podemos ver também nessa leitura, claramente, a vontade serena e a suprema dignidade com que Ele dominou toda esta Paixão prevista e, mais do que aceita, desejada. Morreu porque o quis, morreu quando o quis, no momento em que, com plena consciência, pôde dizer a Si mesmo: ‘Tudo está terminado, minha tarefa está feita’. Morreu pelos meios que quis. Acabamos de ver como, mesmo na realidade humana, isto Lhe era fácil.

Neste corpo humano sofredor e agonizante, residia a divindade que continuou no cadáver. E é por isto que a Face do Santo Sudário é a única no mundo que nos mostra aquela serena, desconcertante e adorável majestade”[9].

Origem da Via Sacra

Tendo bem em vista o gênero atroz de sofrimentos que Nosso Senhor passou por amor aos homens, cumpre agora observar a postura de sua Mãe Santíssima, que a justo título é chamada Mater Dolorosa. [10]

Para tal, faz-se útil conhecer o que Ana Catharina Emerich, – religiosa alemã, de vida venerável – sentiu e viu misticamente a este propósito:

“Quando Jesus foi levado a Herodes, João acompanhou a Virgem e a Madalena por todo o caminho feito por Jesus. Assim, voltou para casa de Caifás, Anás, a Ofel, ao Getsêmani, o Jardim das Oliveiras, e em todos os lugares, onde o Senhor tinha caído ou sofrido, eles se detinham, faziam silêncio, choravam e sofriam com Ele. A Virgem se prosternou mais uma vez, e osculava a terra nos lugares onde Jesus havia caído. Este foi o início da Via Sacra (ou Via Crucis), e as honras prestadas à Paixão de Jesus, antes mesmo que ela se cumprisse. A meditação da Igreja sobre as dores de seu Redentor começou na flor mais santa da humanidade; na Mãe virginal do Filho do homem. A Virgem pura e sem mancha consagrou para a Igreja a Via Sacra, para recolher em todos os lugares, como pedras preciosas, os méritos inesgotáveis de Jesus Cristo; para apanhá-los como flores no caminho e oferecê-los a seu Pai celestial para todos os que têm fé. (…) João amava e sofria. Conduzia pela primeira vez à Mãe de Deus pelo caminho da cruz, onde a Igreja deveria segui-la, e o porvir a aparecia”[11].

Com o passar dos séculos a devoção popular, inspirada pela graça, foi “trabalhando” o que nós conhecemos hoje propriamente como Via Sacra.

Antes do falecimento do Beato João Paulo II, já o então Cardeal Joseph Ratzinger descrevia a identidade da Via Sacra da seguinte forma:

“Na Via Sacra, a devoção popular e a piedade sacramental se enlaçam e se complementam mutuamente”[12] .

Assim, com o desenrolar dos tempos, foi se desenvolvendo uma divisão em cada ato mais significativo do que se conhece sobre a paixão de Nosso Senhor e, no presente, existem 14 estações em que, se reza e medita sobre a vitória de Cristo sobre o mundo.

 

O Pulcrum das Confrarias

Quando se fala em “Via Sacra” em muitos ouvidos se ecoa “Semana Santa”. Naturalmente uma coisa e outra em nada se dissociam, mas, em alguns lugares, há uma fusão subconsciente e, por assim dizer, orgânica entre ambas, com o resultado final de um culto especial a esses últimos momentos de vida d’Aquele que em breve irá ressuscitar.

A Espanha, sem dúvida, é o país em que isso é muito bem vivenciado. Durante a Semana Santa – e em parte da Quaresma – são organizadas confrarias, grupos de oração, que se unem para venerar o Cristo das dores e sua Mãe de lágrimas; imagens com trajes belíssimos, portadas em andores extraordinariamente bem decorados, retratando cenas e imagens que representam os passos da Paixão do Senhor.

Aí se vê o pulcro, o belo oferecido a Nosso Senhor como ato de reparação aos pecados. E, a esse respeito, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira comenta que nessa atitude só podemos ver nobreza e seriedade de espírito, cercando de ornato a dor multiplicada pela dor: ora é o Filho de Deus carregando sua Cruz, ora flagelado e coroado de espinhos, ora posto diante de seus algozes sem ter como se defender. “Jesus humilhado e grandioso, isolado na sua inocência, o gravame de nossos pecados. E a procissão continua o seu lento caminhar, deixando à sua passagem um rastro de tristeza e maravilhamento.”[13]

Isso tudo consiste o verdadeiro espírito de Quaresma, equilibrado, sério e enlevado com o mistério que marcou a História, cujas cores fazem brilhar aos homens um grande aspecto do Cordeiro Imolado: sua Paixão trajada de Pulcro!


 

[1] Cf. Catecismo da Igreja Católica. nº 599.

[2] Idem. n° 606.

[3] Cf. S. TH. III. Q. 46, Art. 4, sed contra.

[4] Cf. AGOSTINHO, Santo. Apud Catena Áurea: Homilia De Passione, sup. Mt 27, 35.

[5] Cf. BARBET, Pierre. A Paixão de Cristo segundo o cirurgião. Paris, 1949; ed. Loyola. p. 90.

[6] Idem. p. 93.

[7] Idem. p. 94.

[8] Idem. p. 98.

[9] Idem.

[10] Do latim: Mãe Dolorosa.

[11] Cf. WESENER, Guillermo. Visiones y revelaciones de la Ven. Ana Catalina Emmerick, Tomo III: Vida, Pasion y Glorificacion del Cordero Imolado. Editado pela Revista Cristandad. p. 28. (Tradução própria)

[12] Cf. RATZINGER, Joseph. Pregação da Via Sacra no Coliseu de Roma. 25 de março de 2005.

[13] Cf. Revista Dr. Plinio. A Paixão trajada de pulcro. Março de 2005. p. 34.