Um novo “bom ladrão”

Há poucos dias escrevemos o artigo “Deus não desiste de ninguém”. Hoje publicamos uma carta de um Missionário francês no Vietnã, pe. G. Caysec, à Madre Prioresa do Carmelo de Lisieux datada de 1946. A missiva é mais uma prova do quanto Deus quer a salvação de todos. Ao encarnar-se o Redentor “realizou o holocausto com o intuito de reparar nossas faltas e oferecer-nos a purificação de todas as manchas do pecado de nossos primeiros pais, Adão e Eva, devolvendo-nos o estado de graça e reintroduzindo-nos, assim, na familiaridade com Ele pela participação da natureza divina, concedendo-nos o privilégio de sermos filhos do Pai por adoção: seus irmãos e coerdeiros, para gozarmos a eternidade junto a Ele”.[1]

Segue a carta:

Reverenda Madre Prioresa
No sábado passado, dia 29 de Julho, foi guilhotinado na Prisão Central de Hanói (Vietnã) um assassino, cuja história vale a pena contar.
Chamava-se ele Nguyen-Ba-Tam e tinha 33 anos de idade.
Carregava sobre si duas sentenças de condenação à morte.
A primeira data de 1930, por conspiração contra a segurança do Estado e consequente tentativa de assassinato de autoridades locais.
A segunda foi em Dezembro de 1943, pela morte de um mandarim anamita.

               O Primeiro crime
Em 1930. Tam lançou uma bomba contra um posto de polícia em Hanói. A bomba, sem dúvida mal regulada, explodindo prematuramente, arrancara-lhe o antebraço direito.
Assim, não pôde ser logo julgado, senão passados alguns meses depois da saída do hospital.
Durante esse período recusou ostensivamente os socorros da Religião. Foram inúteis as insistências do caridoso Padre Dronet, não obstante ser ele dotado da singular graça de conduzir ao arrependimento os condenados à morte.
Sua jovem idade (19 anos) e o braço decepado valeram-lhe a clemência presidencial. A pena de morte foi-lhe comutada em trabalhos forçados perpétuos. Ao cabo de 5 anos foi indultado, por ocasião da tomada do poder pela frente popular. E voltou para casa.
Não podendo retornar ao antigo ofício de operário mecânico, fez-se agricultor.

               O segundo crime
Durou isso 8 anos, até o dia em que por razões e em circunstâncias de caráter íntimo segundo me disseram, assassinou o mandarim anamita, chefe do distrito onde residia.
Condenado à morte pela segunda vez, acaba de ser executado.

               Antecedentes
Durante os 10 meses que esteve encarcerado, mostrou-se sempre cortês com o Padre Dronet, mas por longo tempo desinteressou-se do problema religioso.
Mais ou menos um mês antes da sua execução, pediu-me um livro qualquer para ler. Levei-lhe a vida de Santa Teresinha do Menino Jesus em língua anamita.
Voltando a visitá-lo na prisão alguns dias depois, perguntei-lhe se já acabara de lê-lo.
Respondeu afirmativamente. Pedindo-lhe eu o livro de volta para emprestar a outros prisioneiros que me tinham também pedido, disse-me então:
— Esta história interessou-me tanto que me sentiria feliz em lê-la outra vez.
Deixei-lhe ficar com o livro, obviamente. Quando me restituiu, fez-me algumas perguntas sobre a Religião e a vida futura. E depois, me fitando longamente nos olhos, o que me impressionou sobremaneira, declarou-me: “Padre, tenho muito desejo em tornar-me cristão”.
Pode bem imaginar a minha grata surpresa, Reverenda Madre.
À saída deixei-lhe a história dos Mártires de Tonquim, e dias depois levei-lhe um Catecismo.

               A graça trabalha intensamente sua alma
               Depressa percebi a graça trabalhando sua alma e que ele fazia diligência por lhe corresponder.
— Padre, peça a Deus por mim, que me faça compreender a Religião Católica, disse-me em confidência.
Ofereci-lhe um livro de orações com a recomendação de aprender de cor as principais e de recitá-las muitas vezes todos os dias.
— Vou fazê-lo com prazer e com a maior facilidade, porque desde que li a vida de Santa Teresinha, tenho a alma em paz e durmo bem toda a noite. Anteriormente meu espírito estava continuamente perturbado e tinha horríveis pesadelos.
Alguns dias antes da sua execução, quando ainda se ignorava a data, Ba-Tam pediu-me com insistência que fosse assistir sua subida ao cadafalso, porque ficaria consolado se nesse momento tiver ao seu lado um sacerdote.

               A tranquilidade na hora H
               Na véspera da execução recebeu o Baptismo. Foi uma festa para ele. E não sabia ainda que devia morrer no dia seguinte. Mas em consequência de uma indiscrição carcerária veio a sabê-lo à tarde, ao cair da noite.
Os companheiros de prisão disseram-me que tinha passado a noite a rezar e a cantar.
Tinha se recusado a tomar a última refeição e também um copo com bebida alcoólica dizendo: “Não tenho necessidade nenhuma disso”. Recusou igualmente o último cigarro. “Fume esse cigarro para agradar aqueles que lho oferecem”, disse-lhe eu.
Pegou no cigarro e fumou-o com a calma com que fumava os que eu lhe oferecia nas visitas que fazia.
Chegado diante do cadafalso deu provas de uma calma e uma docilidade que surpreendeu toda a gente que o ia assistir à última hora.
Quiseram amarrá-lo, mas recusou-se a isso alegando que não era preciso. Os ajudantes do carrasco, contrafeitos e não querendo forçá-lo, dirigiram-se ao padre:
“O regulamento é formal, temos de amarrá-lo”.
“Deixe-se amarrar porque é preciso. Nosso Senhor também se deixou amarrar”, disse-lhe o capelão.
Então Ba-Tam deixou-se amarrar sem uma palavra, sem um movimento de oposição, de resistência.
No momento em que ia subir ao cadafalso, exclamou:
“Morro contente porque tendo sido batizado sei que os meus pecados foram perdoados e que o meu coração está limpo. Vou comparecer diante de Deus com toda a confiança, sem nenhum temor. Apresentem os meus cumprimentos ao Padre Dronet que tantas vezes me visitou na cela”.
Depois calmamente subiu ao cadafalso e sem que os ajudantes do carrasco tivessem de intervir, meteu a própria cabeça na guilhotina.
O pessoal da prisão estava impressionado ao vê-lo caminhar para a morte com tanta serenidade.
Foi mais uma graça alcançada por Santa Teresinha do Menino Jesus.


 

[1] DIAS, João S. Clá. O inédito sobre os Evangelhos. Vol. VI. Editrice Vaticana, p. 292.